Por Carlos Eduardo Carvalho, economista e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP
Publicado no site da ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) em 16.03.2005.
Adesão do governo Lula ao neoliberalismo não se resume à continuidade da política econômica, sua face mais visível. Envolve questões mais profundas, envolve a essência da ideologia neoliberal.
Um ano depois da posse, o governo Lula é um triunfo espetacular do neoliberalismo, o maior desde a virada argentina de 1989, quando Menem, eleito pelo peronismo, iniciou as “relações carnais” com os EUA e com o grande capital.
O governo Lula manteve a política econômica dos últimos anos de Fernando Henrique e Malan, com resultados semelhantes. A preservação dos ganhos excepcionais dos credores do Estado, dos bancos e do grande capital se fez à custa de estagnação econômica, queda do emprego e da renda dos trabalhadores, corte dos gastos sociais, aumento da dívida pública.
A adesão do governo Lula e de seu governo ao neoliberalismo não se resume à continuidade da política econômica, sua face mais visível. Envolve questões mais profundas e mais duradouras, envolve a essência da ideologia neoliberal. O neoliberalismo não é um conjunto específico de políticas macroeconômicas, nem sua superação dependerá seja de uma simples substituição da dupla Palocci-Meirelles seja de uma mudança nos rumos que eles mesmos possam realizar a partir de um agravamento do quadro internacional, por exemplo, ou de alguma pressão do próprio Planalto, por cálculo eleitoral.
O principal argumento para as políticas continuístas de Palocci-Meirelles era a gravidade do quadro econômico, mas o governo foi bem mais além: encaminhou reformas institucionais de inspiração neoliberal; nomeou economistas afinados com o neoliberalismo norte-americano para posições estratégicas não só do Ministério da Fazenda, mas também dos ministérios responsáveis pelas políticas sociais; afinou seu discurso e sua imagem pelos valores neoliberais, em detrimento dos valores da esquerda. Nada disso era requerido pela situação econômica de curto prazo.
O neoliberalismo estava na defensiva no continente desde a catástrofe argentina de 2001 e as péssimas consequências sociais e econômicas. Muitos paradigmas neoliberais vinham sendo criticados em escala mundial, com a desmoralização de valores e instituições que se seguiu aos grandes desastres financeiros nos EUA em 2001-2002. Surgiram fraturas importantes no seu próprio campo e alcançaram grande repercussão as fortes críticas do economista Joseph Stiglitz ao FMI e ao Banco Mundial. A adesão de Lula e do PT é um tremendo contraponto ao que parecia ser um declínio progressivo da sufocante hegemonia dos dogmas neoliberais e ameaça recolocá-los na mesma posição de força anterior.
O que pensar de tudo isso e o que fazer são duas questões complexas e difíceis para quem optou por resistir à maré montante neoliberal e continuar na esquerda. Este texto entra no debate da primeira para melhor refletir sobre a segunda, a mais difícil. Apresenta quatro seções: a primeira retoma o conceito de neoliberalismo, ao qual Lula aderiu de forma ampla, e não apenas por problemas econômicos conjunturais, o que se discute na segunda seção; a terceira apresenta o predomínio dos valores neoliberais na retórica e na imagem do governo e a última apresenta elementos para a discussão dos desafios e as alternativas colocadas para a esquerda no Brasil a partir da grande virada do PT.
1. O neoliberalismo é muito mais que uma política econômica
O neoliberalismo é um conjunto de ideias e valores bem mais amplo que as políticas econômicas que nele se referenciam e não apresenta um conjunto rígido e bem definido de políticas a serem aplicadas. Nos governos ditos neoliberais verifica-se grande variedade de políticas econômicas específicas, inclusive coexistindo no mesmo período.
Nos principais países da América Latina, por exemplo, houve quase todos os tipos possíveis de políticas cambiais nos últimos anos: câmbio flutuante “sujo”, com foco no câmbio real e controle de capitais de curto prazo no Chile, currency board rígido na Argentina de 1991 a 2001, câmbio deslizante com desvalorizações prefixadas no Brasil de 1995 a 1998 e no México de 1988 a 1994, câmbio flutuante “sujo” no México a partir de 1995 e no Brasil a partir de 1999. Brasil e Argentina implementaram programas antiinflacionários de choque, em 1991 e 1994, o México utilizou gradualismo com negociação de 1988 a 1994, enquanto o Chile, de 1984 a 1999, procurou a redução gradativa sem choques e enfatizou a estabilidade da taxa de câmbio real.
É verdade que o quadro é mais definido nas privatizações, mas não se pode esquecer que a desestatização radical da Argentina conviveu com a manutenção da grande estatal do cobre no Chile, a Codelco, cujas receitas, apropriadas pelo Estado, sustentaram grande parte das políticas de apoio às exportações, de privatização da Previdência e de regulação macroeconômica anticíclica. Este intervencionismo ativo no Chile conviveu com a liberalização radical das importações e viabilizou o apoio firme às exportações. Além disso, o tamanho do setor público varia muita carga tributária brasileira é quase o dobro da argentina e da mexicana, com o Chile em posição intermediária, apoiado nas receitas da estatal do cobre.
Quando analisado pela ótica das políticas econômicas, o neoliberalismo se revela mais um paradigma que um receituário detalhado, mais um conjunto de valores gerais para orientar as políticas econômicas que um conjunto articulado de políticas específicas. É um paradigma forte, bastante para estabelecer limites rígidos para as orientações básicas das políticas a serem feitas, para estabelecer um campo de ideias difícil de ser rompido e contestado; mas, é também um paradigma elástico e amplo, bastante para abrigar políticas específicas muito variadas e mesmo díspares entre si.
Além de dar ampla margem de manobra para os governos em cada país, esta flexibilidade permite aos defensores do neoliberalismo transferir responsabilidades e apresentar explicações fáceis para seus fracassos retumbantes. Permite-lhes afirmar, por exemplo, que o catastrófico colapso da conversibilidade na Argentina, em 2000-2001, foi produto do câmbio fixo e da falta de ajuste fiscal rigoroso, e não das orientações liberalizantes. Permite-lhes afirmar que a virtual estagnação da economia brasileira nos últimos dez anos decorreu da política cambial “rígida” e “equivocada” de 1995 a 1998, enfaticamente defendida por eles na época, e não da subordinação da política econômica a uma concepção equivocada de estabilização e à defesa injustificada de juros reais elevados.
Alguns autores ressaltaram a distância entre orientações gerais e políticas econômicas específicas ao analisar o chamado Consenso de Washington, tido como a principal referência neoliberal na América Latina. Escrevendo no começo da década passada, Fanelli, Frenkel e Rozenwurcel (1993) mostraram que o conjunto de orientações sistematizado por John Williamson era uma abordagem ampla para a mudança estrutural na economia, mas pouco tinha a dizer sobre a estabilização, questão macroeconômica candente na época e que ficou a cargo da abordagem tradicional do FMI ou da escolha das autoridades econômicas de cada país. Anos depois, ao analisar os fracos resultados das políticas neoliberais, Stiglitz afirmou que o sucesso do Consenso de Washington se deveu à sua simplicidade, ao seu caráter quase intuitivo, e que aos seus diagnósticos e formulações faltam elementos cruciais, como as fontes de dinamismo para o crescimento, as ligações entre as políticas de curto e de médio prazo, a sequência ideal das políticas, os riscos de trajetórias explosivas, as relações entre poupança e investimento.
A percepção correta deste caráter vago e genérico do neoliberalismo e do Consenso de Washington não contradiz sua enorme influência sobre as formulações da política econômica no Continente. Sua capacidade de se impor apoiou-se fortemente neste caráter impreciso, combinado com ideias-força muito nítidas, cuja aplicação dependia de flexibilidade, de capacidade de adaptação aos problemas complexos e peculiares das economias latino-americanas. Ao contrário das políticas específicas, estas ideias-força são rígidas e conformam um paradigma poderoso, capaz de se sobrepor às políticas e orientar seu sentido geral. Pode-se recorrer à interpretação de Perry Anderson:
A teoria neoliberal oferecia, em seu começo, uma espécie de temário máximo, do qual os governos podiam escolher os temas mais oportunos, segundo suas conveniências conjunturais, políticas ou administrativas (…). O maximalismo neoliberal, neste sentido, foi altamente funcional. Oferecia um repertório muito amplo de medidas radicais possíveis, ajustáveis às circunstâncias. E, ao mesmo tempo, demonstrou o largo alcance da ideologia neoliberal, sua capacidade de abarcar todos os aspectos da sociedade, e assim jogar o papel de uma visão de mundo verdadeiramente hegemônica.
Com base na experiência dos últimos anos, em especial na América Latina, pode ser proposto um resumo deste paradigma geral da forma apresentada a seguir:
Prioridade absoluta para os direitos do capital
– ampliação dos direitos dos credores e dos investidores em títulos financeiros: “respeito aos contratos”, “regras claras”, “transparência”;
– ajuste fiscal para garantir o pagamento pontual das obrigações do Estado com a dívida pública;
– estabilidade do valor da moeda e do sistema financeiro, para evitar os riscos de desvalorização de ativos financeiros;
– liberdade cambial, livre movimentação de capitais, conversibilidade.
Ocultamento das relações capital-trabalho e responsabilização do indivíduo frente ao capital
– exclusão das relações de trabalho do debate público, colocadas como questão inexistente ou como questão privada, sobre a qual não se deve falar;
– proteção social tratada como questão individual, como decisão pessoal de prevenir-se; previdência pública apenas para os miseráveis, os que “não deram certo”;
– direitos dos trabalhadores tratados como privilégios, fruto de populismo, e causa de desemprego e de ineficiência econômica;
– possibilidade de emprego como decorrência da qualificação e das aptidões do trabalhador, e não como função do desempenho da economia e da estrutura produtiva.
Despolitização da política econômica, tratada como técnica universal
– “fim da macroeconomia”: políticas macroeconômicas apresentadas como técnicas rígidas, divididas apenas em “responsáveis” ou “populistas”;
– transferência das preocupações com o crescimento, o emprego, a distribuição de renda, a eficiência e a produtividade, para programas localizados, “microeconômicos”;
– independência e autonomia das instâncias públicas decisivas, em especial o Banco Central, de modo a deixá-las fora do alcance da sociedade e das instituições políticas democráticas.
Abertura de novos espaços para a valorização do capital
– privatização generalizada do setor produtivo estatal;
– transferência da saúde, previdência e educação para o setor privado, pois o mercado é mais capaz de prover as necessidades individuais e sociais que o estado.
Responsabilização dos países dependentes pelos efeitos da desordem financeira internacional
– defesa da liberdade de circulação de capitais e da livre conversibilidade das moedas;
– responsabilização dos fatores domésticos pelas crises cambiais: ausência de “ajuste fiscal necessário”, falhas na regulação dos sistemas financeiros e políticas monetárias “frouxas”.
É importante destacar que o equilíbrio entre estes diversos itens é instável e variado. Em alguns países permitiu e promoveu políticas de crescimento acelerado, como no Chile e no México, com as quais atenuou a exploração do trabalho e a concentração da renda. Em outros, combina-se com políticas nacionalistas e de crescimento acelerado, como na Índia. Como todo paradigma, esta plasticidade é essencial para garantir sua força.
Além de poderoso e flexível, este paradigma é mistificador na sua essência. Transfere todas as responsabilidades econômicas e sociais para o indivíduo isolado frente ao capital e para os países da periferia frente aos países centrais, mas não prescinde do apoio dos bancos centrais aos grandes bancos privados e aos credores do estado, nem do FMI e do governo dos EUA aos banqueiros e especuladores. A discussão sobre a chamada “nova arquitetura financeira internacional”, por exemplo, está concentrada em atribuir aos países dependentes a responsabilidade de evitar os efeitos perversos da ampla mobilidade de capitais. Um de seus componentes básicos é restringir com rigidez o uso do crédito como instrumento de desenvolvimento econômico, pelas exigências de adesão estrita aos acordos de Basileia.
O paradigma neoliberal despolitiza a macroeconomia, a pretexto de haver técnicas inequívocas, mas convive com uma enorme diversidade de políticas e opera firmemente em favor dos grupos mais influentes do capital. Apresenta-se como anti-estatal, mas depende da iniciativa do estado para ser implantado e ser gerido. Não é demais recordar que a grande massa da riqueza capitalista é formada hoje por moeda fiduciária, garantida unicamente pela autoridade política do estado emissor e por títulos financeiros lastreados por títulos de dívida de estados nacionais.
Não parecem procedentes avaliações como as de Renan Veja para quem o neoliberalismo “já não precisa ocultar-se sob nenhuma máscara pseudodemocrática (…) para recuperar os lucros dos capitalistas (…) e desmontar todas as “concessões” feitas aos pobres, (…) sem incômodas alianças social-democráticas com sindicatos e trabalhadores (…)”. Ao contrário, o neoliberalismo se legitima com a criação de máscaras, assume as bandeiras tradicionais de seus adversários históricos para esvaziá-las e modificar seus conteúdos, busca associações espúrias e casuísticas para viabilizar a aceitação de suas propostas.
As teses neoliberais eram muito explícitas na sua origem, nos escritos de Hayek e Friedman, mas, nas últimas décadas, se caracterizam pelo esforço permanente de incorporar valores “universais” de forma mistificadora. Apresentam-se como paladinos da democracia, da distribuição de renda e da redução das desigualdades sociais, embora promovam ativamente o contrário. O qualificativo “neo” se justifica bem por esta incapacidade de se apresentar como liberalismo clássico, característica que o neoliberalismo só assumiu quando se transformou de proposição teórica em paradigma de políticas econômicas, a partir dos governos de Thatcher e de Reagan. A outra justificativa para o qualificativo “neo” é que o liberalismo da segunda metade do século XX está voltado para desmontar o estado intervencionista e de bem-estar social. Esta delimitação histórica, contudo, não parece suficiente para distingui-lo do liberalismo clássico, do final do século XVIII e do XIX, a não ser pela incapacidade de se afirmar sem o apoio do estado que tanto critica.
A passagem do neoliberalismo “puro” para o pragmatismo das últimas décadas reforça a conveniência de periodizar melhor sua trajetória histórica. Para Ricardo Gómez, existem quatro períodos na história do liberalism o liberalismo clássico, de Adam Smith; o liberalismo neoclássico, do século XIX; o neoliberalismo da luta teórica, de Hayek e Friedman; e o neoliberalismo “implementado”, a partir do golpe militar de 1973 no Chile, cuja fase atual se caracteriza pelo “extremismo teórico”, no qual a solução dos problemas “é sempre uma só: mais neoliberalismo, ou seja, corrigir os problemas, mas por meio de levar ao extremo as políticas neoliberais”. Nesta linha, o momento atual seria de exacerbação do paradigma teórico abrangente e poderoso, na linha de Perry Anderson.
Outra proposta de periodização é apresentada pelo próprio Perry Anderson, com base nas “ondas” de triunfos de governos e políticas neoliberais: Chile, em 1973; Thatcher e Reagan, em 1980-81; “conversões” na Europa nos anos 1980: Mitterand, González, Soares; novos governos na Europa do Leste e Rússia, a partir de 1991, e na Europa Ocidental, a partir de 1992; “conversões” na América Latina a partir do final dos anos 1980: o PRI mexicano, Menem na Argentina, Fujimori no Peru. Por esta perspectiva, o avanço do neoliberalismo se revela um processo muito poderoso, capaz de converter forças políticas que sempre lhe fizeram oposição ou que conseguem se eleger e se legitimar criticando-o de forma agressiva. Ao mesmo tempo, revela flexibilidade suficiente para acomodar as peculiaridades e idiossincrasias de cada experiência nacional.
Vista sob esta ótica, a conversão de Lula e do PT se revela menos excêntrica. Trata-se apenas de mais um governo eleito pela esquerda que se rende ao paradigma dominante, tomando o cuidado de defender que as mudanças não rompem a fidelidade ao que dizia ser.
2. A política econômica como opção estratégica
A discussão apresentada no item anterior contribui para a análise de duas questões muito relevantes sobre o governo Lula. A primeira é que a hegemonia neoliberal deixa espaços para políticas econômicas variadas, o que enfraquece a defesa das opções atuais como as únicas possíveis com as restrições presentes. A segunda é que a adesão do governo Lula ao neoliberalismo vai muito além da escolha de uma política econômica.
O principal argumento da equipe da Fazenda para justificar suas políticas foi a gravidade do quadro econômico de 2002, o que exigiria “acalmar os mercados” e “ganhar credibilidade” primeiro para “depois” dar início ao “verdadeiro” programa do governo Lula. A exemplo da Argentina de 1999, quando De La Rúa optou pela continuidade, havia no Brasil de 2003 outras alternativas além do bom comportamento e da reprodução do passado.
Não é demais recordar a mistificação criada em torno da crise argentina de 2001. Figuras importantes do novo governo advertiram contra o risco de se produzir no Brasil uma catástrofe semelhante, fantasma ameaçador a ser exorcizado a qualquer custo. Obra-prima de mistificação, posto que a tragédia do governo De La Rúa não resultou dos riscos de mudar a política econômica. Pelo contrário, o governo arruinou a si e ao país pela obsessão de manter a qualquer custo uma política cambial insustentável e insistir na combinação desastrada de juros altos e “ajustes fiscais” destrutivos e impraticáveis. A desgraça veio do continuísmo e não da ruptura.
Assim como na Argentina de 1999, havia no Brasil de 2003 alternativas diversas, também arriscadas, porém mais promissoras. Não se tratava de escolher entre opções com ou sem riscos, pois todas envolviam riscos e ofereciam vantagens, imediatas e potenciais. As escolhas feitas reduziram tanto possíveis instabilidades a curto prazo, como as políticas de mudanças, prometidas pelo PT ao longo de sua história.
Mais grave é que o continuísmo, mais que uma opção de curto prazo, é uma escolha estratégica. O documento “Política Econômica e Reformas Estruturais” (www.fazenda.gov.br), do Ministério da Fazenda, deixou claro que as prioridades do governo são as próprias reformas, elaboradas originalmente pelo governo FHC ou por intelectuais e instituições que sempre o apoiaram, como a Febraban, o FMI e o Banco Mundial. Na seção “A Política Macroeconômica”, lê-se que “o governo tem como primeiro compromisso da política econômica a resolução dos graves problemas fiscais que caracterizam nossa história econômica, ou seja, a promoção de um ajuste definitivo das contas públicas”. Nada se diz sobre vulnerabilidade externa, balanço de pagamentos, política de câmbio. Os problemas do Brasil se concentram em “desequilíbrio orçamentário”. É o triunfo completo da visão neoliberal, ou seja, os problemas dos países da periferia do capitalismo não decorrem de uma ordem internacional injusta, nem de problemas estruturais internos, e sim de desequilíbrio orçamentário! Trata-se de um fiscalismo inaceitável e, mais que isso, tacanho. Apesar de todo o esforço de gerar superávits primários, a dívida pública continuou a crescer em 2003, puxada pelos juros altos. É o mesmo resultado da suposta austeridade fiscal de FHC, que elevou a dívida do setor público de 30% do PIB em 1994 para 55% do PIB em 2002.
Em paralelo a essas medidas e orientações de curto prazo, o governo aprovou a reforma da Previdência e a reforma tributária nos mesmos termos propostos, anos atrás, pelo PSDB e pelo Banco Mundial. Na área tributária, a proposta do governo se limitou a medidas para aumentar a competitividade externa da economia e para concentrar poder no governo central. Nada de redesenhar a estrutura tributária para reduzir a desigualdade social e para reduzir o caráter concentrador de renda que sempre a caracterizou no Brasil.
Na discussão sobre a “autonomia” do Banco Central, o governo avança com mais cuidado, mas, em 2003, realizou uma das maiores exigências dos banqueiros e dos liberais: emendou o artigo 192 da Constituição para remover os obstáculos ali colocados e facilitar a aprovação da autonomia, tal qual havia sido proposto pelo senador José Serra anos atrás. Desde 1989, a direita e os servidores do capital financeiro se esforçaram para burlar o espírito do Artigo 192 e regulamentar apenas o que lhes interessava, a “autonomia” do Banco Central. Contudo, uma decisão judicial estabeleceu que o Artigo 192 teria que ser regulamentado em bloco, por uma única lei complementar, como estabelece claramente o seu caput. Para votar o estatuto jurídico do BC, o Congresso teria que votar ou eliminar o limite de 12% para os juros reais; conforme sondagens de opinião realizadas no Congresso, essa questão sempre representou grande dificuldade para a direita. A solução apresentada por Serra foi modificar o caput do artigo por Emenda Constitucional, retirando com isso a obrigatoriedade de votá-la como lei complementar única. A manobra esbarrou no mesmo receio e a questão hibernou durante anos, até ser ressuscitada e aprovada pelo governo Lula no final do primeiro semestre de 2003.
O principal contra-exemplo é a política externa, em especial nas negociações comerciais e na tentativa de formação de um bloco com outros grandes países periféricos. Trata-se de política no geral muito positiva, embora não envolva nenhuma crítica às teses neoliberais de abertura comercial radical como precondição para o desenvolvimento, pois se limita a atacar o protecionismo dos países ricos. Além disso, a luta do Itamaraty na área comercial conviveu com a posição lamentável do governo Lula diante da moratória argentina e das tentativas do governo Kirchner de resistir ao FMI e forçar uma renegociação ampla de sua dívida.
3. Valores neoliberais dominam a retórica e a imagem do governo
A retórica e a imagem pública do governo Lula se enquadram cada vez mais nos valores básicos do neoliberalismo. Desapareceram das falas do governo os temas tradicionais da esquerda, especialmente a disputa entre o capital e o trabalho. O melhor exemplo é o Fome Zero, o principal programa do governo petista. O slogan “o Brasil que come ajudando o Brasil que tem fome” retira o direito de comer e de ter uma vida digna do campo das responsabilidades e obrigações do Estado e o retira também do núcleo de compromissos que devem orientar a política econômica. Estes direitos fundamentais passaram para o campo da caridade, do auxílio mútuo entre as pessoas.
Não se fala mais de direitos e obrigações. A retórica é de parcerias e cooperação com o setor privado, com organizações da sociedade. Nada de direito a emprego e salários dignos como pressupostos do direito à alimentação.
O citado documento da Fazenda nada diz sobre o que deveria fazer o governo para combater o desemprego de imediato. O problema é apontado como dramático, mas não como urgente, como merecedor de ações imediatas do governo. O desemprego e a desigualdade de renda são deslocados para o terreno da formação e da qualificação do trabalhador, para “incentivos” às empresas, como se o emprego dependesse da oferta de trabalho mais qualificado e da redução do custo de contratação formal de trabalhadores.
Os direitos dos trabalhadores não são tratados pelo governo petista como normas legais que devem ser cumpridas. O governo considera sagrado o “cumprimento dos contratos”, incluídos aí apenas aqueles que envolvem remuneração do capital e não os contratos que envolvem as obrigações do capital com o trabalho. O aumento da informalidade na economia e o desrespeito à legislação do trabalho não fazem parte da questão “respeito aos contratos”, e sim do conjunto indeterminado dos “problemas e desafios difíceis”, das “preocupantes” imposições da “globalização”. As empresas não são tratadas como agentes ativos da precarização do trabalho.
Os empresários aparecem como “agentes neutros”, como vítimas de uma legislação inadequada que penaliza a eles e aos trabalhadores. O governo petista ignora o longo e amplo processo de desmontagem dos direitos do trabalho desenvolvido nos últimos anos, com a legislação sobre cooperativas e outros instrumentos legais para mascarar a subcontratação de trabalhadores e a eliminação das responsabilidades patronais. Como bem apontou Nilde Balcã:
“Em nome da terceirização (…) engendra-se no país uma multiplicidade de formas de subcontratação que legitimam formas antigas e jamais evocadas publicamente como formas desejáveis de contratação, como o trabalho a domicílio, o trabalho temporário, assim como outras que nem sequer eram mais evocadas, como os contratos de representação comercial. A legislação vai sendo toda ela retrabalhada na busca dos artigos que permitam considerar legais as novas formas de contratação. A polêmica sobre a legalidade da terceirização (…) fica restrita aos juristas e quase que invisível diante do público. Em meio a essa polêmica está o problema de que a terceirização vai se traduzir num descolamento entre a figura do empregador e do empregado, tais como tipificados pela legislação, e as relações de trabalho ou as relações entre empresas que estão surgindo”.
A penetração dos valores neoliberais tem aparecido em sucessivas declarações do presidente da República. Nos primeiros meses do governo, o declínio da inflação, da taxa de câmbio e do “risco-país” nos mercados internacionais foi saudado pelo governo como indicadores da correção das suas escolhas na política econômica. Mais de uma vez, o Presidente da República comemorou o fato de que “todos os indicadores econômicos estão melhorando”; enquanto isso, os indicadores registravam aumento do desemprego, queda contínua da renda real dos trabalhadores e desaceleração da economia. Indicadores de renda real e produção deixaram de ser relevantes para as autoridades econômicas. Indicadores de emprego e renda real do trabalho deixaram de ser indicadores econômicos!
Em mais de uma ocasião, Lula ressaltou que os pobres são “bons pagadores”, para justificar programas de microcrédito e, principalmente, o desconto de empréstimos bancários diretamente nos salários. Séculos de lutas para reduzir o poder dos credores sobre o cidadão foram trocados por uma redução dos juros, desde que os assalariados aceitem dar como garantia seus salários e até mesmo sua futura indenização em caso de demissão! Para coroar, as regras devem ser negociadas pelos bancos com os sindicatos, sem exigências de contrapartidas pelo governo, como sempre propõem os liberais quando os sindicatos estão enfraquecidos ou já foram cooptados pelo patronato. O presidente apresentou tal coisa como uma “conquista”, como um reconhecimento da disposição dos brasileiros pobres de privilegiar o pagamento de suas dívidas com os banqueiros por serem pessoas “honestas”.
Uma coincidência tristemente irônica sobre os significados que podem ser atribuídos à suposta honestidade e dignidade dos pobres no Brasil apareceu em entrevista recente do consultor da ONU para o combate ao trabalho escravo, Kevin Bales (Folha de S. Paulo, 02/02/2004, p A14).
Comentando o caso do Mato Grasso do Sul, destaca que um fator marcante para ele é a “honestidade das pessoas escravizadas. Apesar de perceberem que estavam numa situação de endividamento (…) ilegal, eles consideravam como uma questão de honra continuar ali até pagar o débito de alguma forma. Isso foi muito marcante para mim, a dignidade das pessoas pobres”.
Alguns dos melhores exemplos de furor neoliberal surgiram em declarações do primeiro ministro do Trabalho de Lula, Jacques Wagner, antigo dirigente sindical da CUT. Logo no começo do governo, o ministro “ofereceu” aos empresários a supressão da multa de 40% sobre as demissões, introduzida na Constituição de 1988 como um contraponto à liberdade de demissão instituída no Brasil pela ditadura, em 1965, e preservada até hoje pela recusa dos sucessivos governos brasileiros a assinar as convenções da Organização Internacional do Trabalho sobre o tema.
Depois de novos “oferecimentos” sobre direitos dos trabalhadores que poderiam ser suprimidos para estimular pequenas e médias empresas a oferecer empregos com contrato, o ministro esclareceu que não deveriam contar com ele para “restabelecer a escravidão”. Foi sucedido no cargo por Ricardo Berzoini, outro sindicalista, o ministro da Previdência de Lula, imortalizado por ter suspendido o pagamento das pensões de aposentados com idade superior a noventa anos até que estes se apresentassem nos postos do INSS para provar que estavam vivos…
4. Repensar os caminhos e as alternativas
As questões analisadas nas seções anteriores conformam uma adesão ampla e profunda de Lula e do PT ao neoliberalismo. Dada a sua extensão e dada a ausência de reações significativas no PT na CUT, é correto assumir que se trata de conversão definitiva. Mesmo que venham a ser alteradas as políticas econômicas no curto ou no médio prazo, as posições estratégicas e os valores que orientam o governo estão de acordo com o paradigma neoliberal. Se Lula e o PT persistirem de fato neste rumo, será confirmado o maior estelionato eleitoral da história política brasileira, um caso notável de se eleger pela esquerda e governar pela e com a direita, como, aliás, tem acontecido em muitos outros países nas últimas décadas.
A guinada do PT e de Lula e sua adesão ao campo neoliberal complicam muito o quadro político e as opções da esquerda brasileira. Romper com o governo e o PT é estratégia arriscada. Para quem ocupa cargos dirigentes no PT e em partidos aliados, ou tem cargos eletivos, além da perda da base institucional, romper pode significar o isolamento político. Para quem está fora, tratar de forma sistemática o PT e o governo como adversários a combater pode também conduzir ao isolamento. Estes riscos são ainda maiores com as dificuldades dos movimentos sociais, pressionados pela crise econômica, pela precarização do trabalho e pelo trabalho ativo dos dirigentes dos sindicatos e dos movimentos atrelados ao PT e à CUT.
Ficar dentro e tratar o governo Lula como “nosso governo, apesar de meia boca”, também traz um risco enorme, o risco da paralisia política, da desmoralização e da perda de apoio se e quando a maioria das pessoas se der conta de que sua situação econômica e social piora continuamente.
Além disso, o inchaço do partido reduzirá cada vez mais o peso da esquerda no seu interior, posto que não há um movimento social ativo o suficiente para gerar novos quadros políticos dirigentes no curto prazo.