Fernando Soares Campos, com seu imenso talento literário e o fino humor de sua inteligência, escreveu: “o que precisa de bom clima é dia de praia e lavoura; golpe exige oportunidade” (Pravda.ru, em português, CPLP, 23/04/2021).
E pergunta-se, para que golpe? Se o poder que nos governa, estabelecido pelo golpe das desregulações dos anos 1980, colocou, dentro de cada um de nós, um Ato Institucional nº 5 (AI.5)? Censurando entendimentos, aplaudindo o fim de direitos sociais e o valor do trabalho.
Fiquemos onde nos importa: o Brasil.
O golpe de 1964, planejado nos Estados Unidos da América (EUA), cujos interesses econômicos e geopolíticos diziam não poder admitir mais uma Cuba, com as dimensões do Brasil, no seu quintal ao sul do continente. Era tempo da guerra fria, do interesse das duas grandes potências nucleares mundiais – EUA e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) – que se juntaram para impedir o sucesso da Conferência de Bandung (abril de 1955), ou seja, a possibilidade de um mundo multipolar.
Mas 1964 foi igualmente golpeado, em 1967, pelo ideal nacionalista. Este se construía desde o esforço do nosso patriarca, José Bonifácio de Andrada e Silva (Santos, 13 de junho de 1763 — Niterói, 6 de abril de 1838), com seu Projeto de Brasil, que também o ajudou a ser exilado (de 20 de novembro de 1823 a 23 de julho de 1829). E ressurge num período de governos militares os quais prosseguiram o trabalho desenvolvimentista econômico, trabalhista, cultural, institucional de Getúlio Vargas (São Borja, 19 de abril de 1882 — Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1954).
Quando Ernesto Geisel (Bento Gonçalves, 3 de agosto de 1907 — Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1996), como Presidente do Brasil (janeiro de 1974 a março de 1979), reata relações diplomáticas com a República Popular da China (15 de agosto de 1974), celebra o Acordo Nuclear com a República Federal da Alemanha (27 de junho de 1975), reconhece o governo do marxista António Agostinho Neto, Presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que assume, em 11/11/1975, a Presidência da República Popular de Angola, aprova o Programa Nacional do Álcool (Proálcool), em 14 de novembro de 1975, abrindo alternativa aos combustíveis importados, cria a Fundação Nacional de Arte (FUNARTE), em 16 de dezembro de 1975, e rompe com o tratado militar Brasil-Estados Unidos, em 1977, o poder financeiro internacional resolve por fim à ditadura militar brasileira.
E cria assim, como um contraponto às iniciativas nacionalistas, o ideal do estado democrático de direito, a democracia sem um povo com cidadania, e buscando na classe jurídica os sucessores do estamento militar.
Não há base factual ou documental que apoie, mas, considerando o planejamento que o poder financeiro sempre desenvolveu, primeiro após sua derrota na I Grande Guerra, para reassumir o poder mundial perdido para o industrialismo, depois para suplantar os “anos gloriosos” do pós-guerra (1945-1975), vitorioso na década de 1990, não haveria surpresa se uma pesquisa histórica viesse a revelar que o modelo lava-jato de julgamento já estivesse em cogitação quando as oposições aos militares festejavam a promulgação da Constituição de 1988.
Constituição impropriamente denominada cidadã, pois nenhum direito social, nenhuma defesa da soberania nacional estão previstos nas denominadas cláusulas pétreas, ou seja, naquelas que não podem ser modificadas. Esta restrição está explicitada no artigo 60 parágrafo 4º:
“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais”.
Desde sua promulgação até 2020, foram aprovadas 114 emendas à Constituição de 1988. Conforme os presidentes da época, assim se distribuíram estas emendas:
a) Fernando Collor (15/03/1990 a 29/12/1992): duas Emendas Ordinárias (EC);
b) Itamar Franco (29/12/1992 a 01/01/1995): seis Emendas de Revisão (ECR) e duas EC;
c) Fernando Henrique Cardoso (01/01/1995 a 01/01/2003): 35 EC;
d) Luiz Inácio Lula da Silva (01/01/2003 a 01/01/2011): 28 EC;
e) Dilma Rousseff (01/01/2011 a 31/08/2016): 25 EC;
f) Michel Temer (31/08/2016 a 01/01/2019): sete EC; e
g) Jair Bolsonaro (01/01/2019 a 31/12/2020): nove EC.
A emenda constitucional de revisão (ECR) está prevista no artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) para ser realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria dos membros, e não mais ocorrerá. Por isso, todas são de 1994.
Muitas destas emendas desfiguraram em vários dispositivos o desejo dos constituintes e dos mobilizados movimentos da sociedade. Ficaram intocados as vantagens auferidas pelo sistema financeiro e o empoderamento do judiciário. A defesa dos interesses econômico e social do Estado Nacional, assim como a ação estatal sobre os bens e direitos da Nação foram alteradas. As instituições, longe de se modernizarem, voltaram, passo a passo, ao arcaísmo de sempre. Ou seja, o poder se afasta do povo para se concentrar numa elite, agora mais jurídica do que militar.
A lava-jato brasileira, de inspiração estadunidense conforme atestam suas similares na Argentina (Cristina de Kirchner) e em Portugal (José Sócrates Pinto de Sousa), coloca os membros do judiciário com poderes discricionários, não por dispositivos legais, mas pelas práticas adotadas impunemente naquela justiça curitibana.
Apenas para exemplificar, seguem algumas Emendas Constitucionais Ordinárias (EC):
EC 3 – de 18 de março de 1993: altera os artigos 40, 42, 102, 103, 155, 156, 160, 167 da Constituição. Objeto: Alterar o regime de aposentadoria de servidores públicos, excluir impostos dos Estados e dos Municípios, dar base constitucional para instituir a Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF);
EC 5, EC 6, EC 7 e EC 8 – de16 de agosto de 1995: as duas primeiras alteram o § 2º do art. 25 da Constituição. A EC 5 dá aos Estados a competência para exploração do gás canalizado. EC 6 acaba com a diferença entre empresa brasileira e empresa de capital nacional, permitindo também a empresas constituídas no Brasil com capital estrangeiro participarem de concessões de lavra de recursos minerais. A EC 7 altera o art. 178 da Constituição, permitindo a estrangeiros serem armadores, proprietários e comandantes de navios nacionais e a navios estrangeiros a navegação de cabotagem e interior. A EC 8 altera o inciso XI e a alínea “a” do inciso XII do art. 21 da Constituição para permitir a concessão ao setor privado do setor de telecomunicações;
EC 9 – de 10 de novembro de 1995: dá nova redação ao art. 177 da Constituição, alterando e inserindo parágrafos, para permitir a concessão de atividades de petróleo e gás natural;
EC 13 – 22 de agosto de 1996: dá nova redação ao inciso II do art. 192 da Constituição. Abre caminho para a quebra do monopólio do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) e permite sua privatização;
EC 19 – 5 de junho de 1998: modifica o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências. É uma Reforma da Administração Pública no Brasil, aumentando o período para aquisição da estabilidade dos servidores para três anos de efetivo exercício e estabelecendo limite de gastos com custeio das despesas públicas;
EC 20 – 16 de dezembro de 1998: modifica o Sistema de Previdência Social, estabelece normas de transição e dá outras providências. É a primeira reforma da Previdência Social, desconstitucionalizando as normas do Regime Geral de Previdência Social e abrindo espaço para a criação, por lei, do fator previdenciário. Aumentou o tempo de contribuição para 35/30 anos e instituiu a regulação dos planos de previdência privada;
EC 23 – 3 de setembro de 1999: altera os artigos 12, 52, 84, 91, 102 e 105 da Constituição. Cria o Ministério da Defesa, extingue os Ministérios das Forças Armadas, unificando-os sob o da Defesa;
EC 24 – 10 de dezembro de 1999: modifica os dispositivos da Constituição pertinentes à representação classistas na Justiça do Trabalho. Substitui as Juntas de Conciliação e Julgamento por Varas do Trabalho e extingue a representação classista dos Tribunais do Trabalho;
EC 36 – 29 de maio de 2002: dá nova redação ao art. 222 da Constituição, para permitir a participação de pessoas jurídicas no capital social de empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens, nas condições que especifica. Permite participação estrangeira em meios de comunicação;
EC 40 – 30 de maio de 2003: altera o inciso V do art. 163 e o art. 192 da Constituição, e o caput do art. 52 do ADCT, para flexibilizar a regulação do Sistema Financeiro do Brasil;
EC 45 – 31 de dezembro de 2004: altera dispositivos dos artigos 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição e acrescenta os artigos 103-A, 103-B, 111-A e 130-A. Reforma do Judiciário: cria o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), a repercussão geral e a súmula vinculante; cria novos deveres dos juízes e tribunais; e muda do Supremo Tribunal Federal (STF) para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) a competência de homologar sentenças estrangeiras;
EC 49 – 9 de fevereiro de 2006: altera a redação da alínea b e acrescenta alínea c ao inciso XXIII do caput do artigo 21 e altera a redação do inciso V do caput do artigo 177 da Constituição para excluir do monopólio da União a produção, a comercialização e a utilização de radioisótopos de meia-vida curta, para usos médicos, agrícolas e industriais;
EC 95 – 16 de dezembro de 2016: altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, o Teto dos Gastos Públicos;
EC 103 – 13 de novembro de 2019: estabelece a Reforma da Previdência.
Vê-se a fragilidade da Constituição que se altera em poucos anos, para proteger o que antes combatia: a alienação do País aos interesses estrangeiros.
O caso que será apresentado é emblemático no que se refere aos malefícios que a Lava-jato provocou no desvirtuamento da ação judiciária, no verdadeiro autismo deste poder que se fecha às pressões da sociedade, a quem deveria antes de tudo servir, e deste modo esta mesma sociedade, ao invés de progredir, aperfeiçoar a participação dos cidadãos, retrocede ao arcaísmo colonial.
Alyne Bautista, 53 anos, 22 como servidora pública sem qualquer mácula em seu currículo, é auditora do Tesouro Estadual do Rio Grande do Norte (RGN). Escreve Marcelo Auler em seu blog que, ao assumir, em abril de 2019, o cargo de presidente do Grupo de Educação Fiscal Cidadã, na Secretaria Estadual de Educação e Cultura (SEEC) do RGN, encontrou em sua sala seis mil livros sobre cidadania destinados às escolas públicas. Uma publicação elaborada pelo governo do Ceará e doada ao governo potiguar. Mas surpreendente foi constatar que a SEEC estava adquirindo, por R$ 3.875.370,00, cartilhas com conteúdo semelhante com inexigibilidade de licitação. Também com esta inexigibilidade de licitação, o governo anterior de Robison Faria fizera aquisições, da mesma empresa Centro Brasileiro de Educação e Cidadania – CEBEC, pela Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP), nos valores de R$ 1.300.00,00 e R$ 450.000,00, em 2016 e 2018, respectivamente.
CEBEC, na Junta Comercial, esclarece Marcelo Auler, está registrado em nome do juiz estadual Jarbas Antônio da Silva Bezerra, titular da 16 Vara Criminal de Natal, e da servidora do Tribunal Regional Eleitoral (TER-RN). Lígia Regina Carlos Limeira.
Transcrevo de Marcelo Auler: “o que Alyne sequer imaginava é que a descoberta da possível malversação das verbas públicas naquele agosto (2019) provocaria um terremoto na sua vida pessoal. Culminou, no transcorrer dos 21 meses subsequentes, com um processo administrativo e, inacreditavelmente, sua prisão preventiva, executada na manhã da quarta-feira, 14 de abril. Decorridos sete dias, na noite desta terça-feira (20/04), ela ganhou direito à liberdade através de uma liminar concedida pelo desembargador Gilson Barbosa. Foram sete dias recolhida à Penitenciária Feminina do Complexo Penal Dr. João Chaves, em um espaço com outras três pessoas”.
Prossegue Auler: “a prisão foi decretada pela juíza Ada Maria da Cunha Galvão, da 4ª Vara Criminal de Natal, atendendo ao pedido da delegada Karla Viviane de Souza Rêgo, da Delegacia de Defesa do Patrimônio Público e do Combate à Corrupção – DECCOR, após parecer favorável do Ministério Público. Na decisão judicial não fica explícito os crimes pelos quais a auditora é acusada. A mesma juíza, porém, em 2 de março, acatou denúncia contra a Alyne”.
Este é o País que deixou impune os agentes lava-jateiros, desfigurou a Constituição e vê a cada dia suas instituições naufragarem no que, no mínimo, seria classificado com inconsistências administrativas e processuais, mas que o afasta da soberania e da cidadania.
Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.
Com informações AEPET