
Por Raphael Machado.
Muitos comentários dizendo que a Rússia “errou” em não atacar a infraestrutura ucraniana desde o primeiro dia da operação, mas eu discordo e eu diria que isso é perder de vista o contexto mais amplo do conflito.
Atacar com uma estratégia de “choque e pavor” seria útil para derrotar a Ucrânia rápido, mas não para derrotar o Ocidente.
De fato, existem indícios de que havia conversas discretas entre a Rússia e certos setores do aparato militar e político ucraniano para um golpe ou algo semelhante em Kiev nos primeiros dias do conflito. É necessário recordar, inclusive, do discurso de Putin, ainda na primeira semana do conflito, no sentido de que os militares ucranianos voltassem suas armas contra seu governo.
Mas quando esse suposto plano não se concretizou e logo ficou claro que o lado ucraniano também não estava interessado em diálogo, a Rússia mudou de estratégia rapidamente para um conflito razoavelmente prolongado (a durar, pelo menos, até o inverno-primavera do próximo ano), o que só pode significar que o alvo deixou de ser primariamente a Ucrânia para se tornar o sustentáculo do aparato ucraniano e a verdadeira ameaça à Rússia.
Isso que eu estou comentando se deu já em fevereiro-março. De modo que a partir de abril podemos falar já em uma estratégia que apostava em segurar o conflito da forma mais estável possível por conta das consequências inevitáveis fora da seara militar.
Tudo isso é muito trivial e as pessoas não cairiam em avaliações equivocadas desde que recordassem das palavras de Clausewitz de que a guerra é a continuação da política por outros meios. Ou seja, que a guerra é um instrumento específico de fins políticos, não sendo possível entender realmente os conflitos militares sem entender contextos políticos, históricos, culturais e econômicos.
A Rússia, que ao longo dos últimos 20 anos, mesmo com Putin, tentou evitar um conflito derradeiro com o Ocidente e que, se inicialmente até tentou se encaixar no sistema-mundo ocidental, depois se deparou com a realidade concreta de que não existe lugar para a Rússia na Aldeia Global do Fim da História.
Com Putin ou sem Putin, o projeto atlantista para a Rússia envolve o cerco do país até a fragmentação do Estado russo em uma dúzia de países mais fracos. Processo iniciado com o colapso do Império Russo e o fomento da Guerra Civil de 1918 a 1920 e continuado com o colapso soviético.
A Rússia adiou a resolução final dessa querela existencial até o último momento. Mesmo com os russos étnicos sofrendo limpeza étnica, Putin buscou evitar o conflito e limitou a ação do Estado russo à Crimeia. Mesmo com a violação dos Acordos de Minsk e a continuação do massacre de civis, Putin adiou e se esquivou da resolução do problema.
Ainda com a operação especial em andamento, Putin ofereceu diversas hipóteses de resolução do conflito da maneira mais sensata possível. Nenhuma dessas aberturas da Rússia foi aceita, porque, na melhor das hipóteses, o Ocidente pretendia fragmentar a Rússia ou botar a Rússia em xeque com mísseis balísticos posicionados em Kiev ou, na pior das hipóteses, prender a Rússia em uma nova “Guerra do Afeganistão”.
A Rússia descobriu-se em um mundo sem espaço para sua existência, o que foi simbolizado pela exclusão do território russo de alguns aplicativos de mapas do Ocidente. Demorou, mas Putin entendeu que o Ocidente estava em uma guerra até a morte contra a Rússia.
A operação especial militar russa na Ucrânia, já vencida, se converteu em uma guerra velada pela libertação da Europa e pela destruição da OTAN. Esses objetivos só poderão ser alcançados, mesmo que parcialmente, pelo menos no início da primavera no hemisfério norte em 2023.
Eu até concordo que uma linha mais dura de ataques contra infraestruturas demorou um pouco. Poderia ter vindo algumas semanas antes. Mas é um erro pensar esse conflito como episódico. Estamos diante de uma guerra que definirá os contornos dos próximos 50 anos. É isso que está em jogo, a possibilidade de um futuro, e não só da Ucrânia.