
Por Geraldo Luís Lino.
O último dia 6 de junho marcou o 80º aniversário do desembarque das tropas dos Aliados ocidentais na França, em 1944, a Operação Overlord (Senhor Supremo), mais conhecida como o Dia-D. Em função da russofobia que se instalou no Ocidente liderado pelos EUA com guerra na Ucrânia, a Rússia foi excluída das celebrações oficiais. Anteriormente, em abril, em uma interpretação histórica correta, os organizadores franceses haviam afirmado que a Rússia seria convidada, “em honra à importância do comprometimento e aos sacrifícios dos povos soviéticos, bem à sua contribuição para a vitória de 1945”. Porém, “aliados da Ucrânia” (cuja identificação não exige esforço mental) manifestaram a sua desaprovação ao convite, levando os anfitriões a “desconvidar” Moscou. Recorde-se que, em 2014, o presidente Vladimir Putin participou da celebração dos 70 anos do desembarque.
Em outra distorção oportunista, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky esteve presente ao evento, que foi configurado como um virtual remendo da História, com uma espécie de “rebaixamento” do papel crucial desempenhado pela então União Soviética na derrota do nazifascismo. Ironicamente, o regime nazista tinha numerosos adeptos na Ucrânia ocupada pelos alemães, entre eles o líder da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN), Stepan Bandera, ícone dos atuais ultranacionalistas ucranianos, que exibem às claras a sua nostalgia pelo regime de Adolf Hitler.
No entanto, a por si só ultrajante presença de Zelensky foi ofuscada pelo cinismo do presidente estadunidense Joe Biden, em um dos discursos mais abjetos proferidos por um chefe de Estado em tempos recentes. Falando no Cemitério Americano na Normandia, em Colleville-sur-Mer, onde estão enterrados 9.388 militares estadunidenses, ele disparou: “Nós conhecemos as forças sombrias contra as quais esses heróis lutaram há 80 anos. Elas nunca desvanecem. Aqui na Europa, nós vemos um exemplo destacado. A Ucrânia foi invadida por um tirano voltado para a dominação… Sejamos a geração que, quando a História sobre o nosso tempo for escrita – em 10, 20, 30, 50, 80 anos à frente –, será dito: Quando o momento chegou, nós enfrentamos o momento. Nós permanecemos fortes. As nossas alianças se fortaleceram. E nós também salvamos a democracia no nosso tempo” (The White House, 06/06/2024).
É preciso um grande contorcionismo mental para se aceitar que os EUA e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) estão lutando pela “democracia” na Ucrânia. O mandato de Zelensky expirou em 20 de maio último, mas ele justifica a ausência de eleições pela vigência da lei marcial decretada por ele no início da guerra, em 2022. Porém, a lei marcial não justifica o banimento de virtualmente todos os partidos e órgãos de imprensa que lhe faziam oposição, o que já ocorria antes da guerra.
Em 6 de junho de 1944, 156 mil homens desembarcaram em cinco praias da Normandia, pegando de surpresa as forças alemãs, que esperavam um ataque no Passo de Calais, a parte mais estreita do Canal da Mancha. A grande maioria das tropas era dos EUA, Reino Unido e Canadá, com uma unidade polonesa. Por ironia, apenas 177 fuzileiros navais franceses participaram da operação, que até a véspera foi ocultada do general Charles de Gaulle, líder da França Livre. Apesar de a França Livre dispor do quarto maior exército entre os Aliados (atrás apenas da URSS, EUA e Reino Unido), o relacionamento de de Gaulle com o presidente estadunidense Franklin Roosevelt e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill era o pior possível, e ele apenas pode voltar a pisar em solo francês em 14 de junho. Até o final de agosto, 2 milhões de homens estavam na França, tendo Paris sido liberada no dia 24 daquele mês.
Todavia, apesar do sucesso da operação, a resistência alemã foi muito mais eficiente e tenaz do que o esperado pelo comando anglo-americano e a progressão pelo território francês foi lenta. Apenas em março de 1945 as tropas Aliadas puderam cruzar o rio Reno, para a ofensiva final contra o regime nazista, que se renderia em 8 de maio.
Por outro lado, 16 dias após o Dia-D, em 22 de junho de 1944, o Exército Soviético desfechou a que viria a ser a maior operação militar da História, Operação Bagration, lançando 2,3 milhões de homens contra o poderoso Grupo de Exércitos Centro-alemão, postado na frente da Bielorrússia. Em dois meses de combates ferozes, que custaram as vidas de 770 mil soldados soviéticos e 450 mil alemães, as forças soviéticas triunfaram e abriram o caminho que as levaria até Berlim, em maio de 1945.
Ambas as operações foram planejadas para ocorrerem simultaneamente, como forma de pressionar as forças nazistas nas duas frentes. No entanto, apesar da sua relevância decisiva para o desfecho da guerra, a batalha na Bielorrússia é quase desconhecida no Ocidente, como, de resto, a brutalidade da guerra na URSS, que custou 27 milhões de mortos, quase um sétimo da população soviética na época (para comparação, as mortes combinadas de militares e civis dos EUA e do Reino Unido não chegaram a 900 mil). Já o Dia-D, em grande medida graças a Hollywood, é quase sempre retratado como “o” momento decisivo da guerra na Europa, apesar de cerca de 85% das baixas alemãs terem ocorrido na Frente Leste. Da mesma forma, apesar do grande número de produções cinematográficas e documentários sobre a guerra e o nazismo em geral, disponíveis nos serviços de streaming, contam-se nos dedos os que recordam a guerra no Leste e, em particular, a Operação Bagration.
Em uma demonstração de que a russofobia não é exclusividade dos atuais líderes ocidentais, ao final da guerra, antes mesmo que secasse a tinta do acordo de rendição alemã, Churchill ordenou ao Estado-Maior britânico a elaboração de um plano para um ataque anglo-americano de surpresa contra as forças soviéticas na Alemanha, inclusive, com a participação de forças alemãs que seriam rearmadas para a traição ao então aliado. A apropriadamente denominada Operação Impensável (Operation Unthinkable) só não foi realizada devido à firmeza dos chefes militares britânicos, que demonstraram a sua inviabilidade ao delirante e traiçoeiro premier, que, em outra grande ironia, passou à História como o grande líder da luta contra o nazifascismo.
De qualquer maneira, o legado dos heróis da Normandia não merece essa mancha e é improvável que os raros sobreviventes daquele momento histórico endossem tal desrespeito aos seus camaradas de lutas da antiga URSS.