Eleições francesas: avanço de Le Pen, ressurreição de Hollande, vexame de Mélenchon e sobrevida de Macron
Por Raphael Machado.
Se dependermos da mídia de massa ocidental para nos informarmos, acreditaremos que, na França, o “nazifascismo” foi derrotado e “a esquerda” triunfou, demonstrando todo o seu poder e apoio popular, etc.
O mundo real, porém, parece não se adequar muito às narrativas triunfalistas dos aparatos de propaganda da hegemonia.
O Reagrupamento Nacional (RN), de Marine Le Pen e Jordan Bardella, se consolidou como o maior e mais popular partido político da França, com 126 assentos na Assembleia Nacional, um grupo parlamentar de 143 deputados e mais de 10 milhões de votos (correspondendo a 37%) no 2º turno.
Quem fala em “derrota da ‘extrema-direita'” está produzindo propaganda, e não análise; e são precisamente as pessoas que inventaram um “risco” do RN levar mais da metade dos assentos da Assembleia (tal como a propaganda ocidental inventou um “Kiev vai cair em 3 dias”, pra depois falar que a Rússia “nem conseguiu tomar Kiev em 3 dias”).
Na prática, o resultado do RN foi bastante confortável e satisfatório. Estão no melhor dos mundos. Um resultado avassalador talvez colocasse o RN na posição desconfortável de ocupar cargos em um governo de coabitação, fritando sua popularidade nos meandros da burocracia da “geringonça” francesa, enquanto Macron seguiria tomando as suas decisões livremente em temas de segurança nacional e política externa.
O RN agora poderá seguir fustigando o governo (melhor ainda se for um governo centro-direita-esquerda, enquanto controla 1/4 da Assembleia. 1/4 da Assembleia não basta para o RN, sozinho, bloquear qualquer projeto ou derrubar o governo, mas é suficiente para obrigar os outros partidos a levar os nacionalistas em consideração, forçando-os a adaptarem e alterarem projetos de lei para que eles possam passar.
O caso da “frente popular” da esquerda é uma história triste e patética de estelionato eleitoral. Essa “frente popular” tem como única figura razoavelmente carismática Jean-Luc Mélenchon, da França Insubmissa. Entendam: ele não era o líder da coalizão, mas não raro atuava como porta-voz por ser, como eu disse, o único político carismático do grupo.
Pois bem, apesar de todo o frisson midiático, o partido de Mélenchon melhorou sua posição na Assembleia em apenas 6 assentos. É um crescimento? É claro. Mas é um tanto quanto peculiar tratar como se fosse a vitória da Copa do Mundo. Dá a impressão de ter algo mais por trás.
Fica fácil entender quando se olha com mais atenção para quem realmente cresceu nesse saco de gatos que era a tal “frente popular” (sem povo). Em paralelo: sem povo por que, de fato, os quase 20 partidos que compunham a tal “frente” só conseguiram abocanhar 7 milhões de votos no 2º turno das eleições.
Os partidos que mais cresceram dessa “aliança antifascista” foram o Partido Socialista (PS) do ex-presidente François Hollande, que quase triplicou de tamanho e o econeurótico EEV, que dobrou de tamanho. O PS foi de 28 para 64, o EEV foi de 15 para 33. Juntos esses partidos representam 50% da tal “frente popular”…
O PS de Hollande é, hoje, o partido mais belicista, “otanista” e atlantista da França, ultrapassando o LR de Sarkozy, desde que Macron chegou ao poder.
Já no governo Hollande (2012-2017), o PS apoiou a intervenção militar francesa no Mali, sob justificativa de “combater extremistas” – extremistas armados e criados pela intervenção francesa na Líbia, gerando uma situação de retroalimentação que tornou a ocupação permanente. O mesmo governo, também, fez campanha pela organização de uma expedição militar internacional contra Bashar Al-Assad, e Hollande admitiu publicamente armar os grupos terroristas curdos e salafistas que espalharram caos e destruição pelo Oriente Médio. Foi Hollande, ademais, um dos arquitetos europeus do Maidan e um dos promotores dos Acordos de Minsk como um artifício para dar tempo de militarizar a Ucrânia para preparar uma guerra, usando a Ucrânia de proxy, contra a Rússia. No plano interno, ainda passou uma reforma trabalhista draconiana e arreganhou ainda mais o país para a imigração, fazendo questão também de promover uma avalanche legislativa woke em matéria sexual e de gênero.
Hoje, o PS é o partido que é mais vociferante no apoio à Ucrânia e nos ataques à Rússia. A sua defesa do reconhecimento de um Estado palestino não passa de uma bagatela cuja finalidade é “lavar” o sionismo para lhe dar sobrevida.
O EEV não fica atrás, acusando a Rússia e a China de serem países agressivos e de espalharem “fake news”, defendendo a remessa ilimitada de armas para a Ucrânia e até mesmo sanções contra a empresa estratégica francesa TotalEnergies por ter violado as sanções anti-Rússia. Para piorar, o EEV nem mesmo finge ser crítico de Israel.
Não é casual, portanto, que o programa da frente popular fala em armar a Ucrânia até os dentes e inclusive de perdoar todas as dívidas ucranianas, para dar sobrevida ao Estado-pária em questão, além de defender “mudança de regime” em Gaza – de modo que quando a “frente popular” fala em reconhecer um Estado Palestino, é uma Palestina sem Hamas e sem as outras forças de resistência. De resto, para além de posições econômicas pouco diferentes das posições da “ala esquerda” do Reagrupamento Nacional, a “aliança arco-íris” promete distribuir cidadania para imigrantes recém-chegados, e ainda inventar a categoria do “refugiado climático”, para aumentar ainda mais a imigração, além de adesão total à pauta do “carbono zero”.
Para os brasileiros interessa o fato de que a frente popular pretende bloquear importações de produtos agropecuários gerados com desmatamento, o que equivale a uma promessa de pressionar em cima da pauta da Amazônia em nosso país, como tem feito Macron.
Mélenchon empenhar o seu carisma e a sua reputação para esse programa, para ressuscitar a carreira arruinada de François Hollande, para eleger o extremista sionista Raphael Glucksmann (ex-assessor de Mikhail Saakashvili, agitador na Praça Maidan junto a Victoria Nuland, russófobo fanático, recentemente exposto como agente da CIA na França) e outros elementos nefastos, enquanto posa de “militante antifascista” não é ingenuidade, é canalhice óbvia.
Mélenchon exerce o papel de bombeiro do sistema, de oposição controlada e isso não é surpresa. Toda vez que o nacionalismo dá uma guinada ascendente, Mélenchon é acionado para justificar o pedido de votos a Macron com apelos aos mitos do antifascismo histórico.
E foi assim que, de novo, ele foi conscientemente instrumentalizado para impedir que a vitória do RN virasse um massacre.
A “frente popular” retirou todas as suas candidaturas em circunscrições nas quais houvesse, no 2º turno, um candidato do RN disputando com um de Macron. Os macronistas fizeram o mesmo em circunstâncias análogas. É a velha estratégia do “cordão sanitário”, que depende da construção de uma “histeria antifascista” pra convencer comunistas a votar em candidatos praticamente ancaps “contra o fascismo”.
Assim, a coalizão arco-íris uniu seus votos à coalizão macronista em todas as circunscrições. E é isso, e apenas isso, que explica o RN não ter levado mais da metade dos assentos da Assembleia.
O problema é que era fácil fazer o cordão sanitário quando o voto em Le Pen era um voto de protesto. Hoje, o voto em Le Pen e em seu partido é um voto popular, bem enraizado e dotado de organicidade e capilaridade. Como fica, aos olhos do próprio eleitorado “esquerdista”, ter que apoiar o Macron eleição após eleição?
Será por isso que 6% dos filiados ao Partido Comunista Francês (membro da “frente popular” e um grandes derrotados dessas eleições) preferiram votar no RN nessas eleições?
Quanto a Macron, que viu o núcleo de seu poder colapsar, com uma perda de 86 cadeiras de seu grupo parlamentar, engana-se quem acha que ele foi destruído. A prova disso é que não apenas não parece que vai renunciar (dizia-se que era o que faria a depender do resultado), como ainda se recusou a retirar o primeiro-ministro Gabriel Attal.
Isso significa que Macron se sente forte o suficiente para, no mínimo, adiar uma troca de governo e, com isso, talvez até prepara uma nova aliança governista. Naturalmente, como qualquer nova configuração governista terá que ser mais heterogênea, isso significa um enfraquecimento de Macron, mas não da sua linha de governo.
Uma aliança com o LR já protegeria o novo governo de um “voto de desconfiança”. Melhor ainda se Macron conseguir atrair, também, o PS e o EEV. Aí Macron teria a maioria necessária para um novo governo estável, ainda que heterogêneo. Mas considerando que tanto o PS quanto o LR (sem a ala gaullista de Eric Ciotti) são neocons e atlantistas, essa heterogeneidade não é tão instável.