
Do Movimento de Solidariedade Íbero-americana.
Imagine o leitor que uma fundação privada brasileira decidisse financiar uma ONG ambientalista dos EUA para uma campanha contra reparos nas rodovias que atravessam parques nacionais do país, como Yellowstone, Glacier, Grand Teton e outros. Não seria ilegal, mas a ONG teria que registrar-se junto ao Departamento de Justiça como agente estrangeira, nos termos da Lei de Registro de Agentes Estrangeiros (FARA, sigla em inglês), sendo obrigada a revelar os seus vínculos, atividades e recursos financeiros. A lei foi originalmente instituída em 1938 para restringir a atuação de agentes de influência da Alemanha nazista nos EUA e a sua aplicação atual está a cargo da Divisão de Segurança Nacional do Departamento de Justiça. As violações podem implicar em processos e punições que vão de multas e,
em casos extremos, prisão dos infratores por até cinco anos.
Vários países têm legislações semelhantes, como a Rússia, Índia, Egito, Turquia, Hungria e outros.
O mesmo fez a Geórgia, onde foi aprovada no início de junho a Lei de Transparência de Influência Estrangeira, inspirada na FARA, a qual obriga ONGs e organizações midiáticas que recebam mais de 20% da sua receita anual ou promovam os interesses de uma potência estrangeira a registrarem-se e exercerem suas atividades com a devida transparência, sob pena de multas que podem chegar a 25 mil lari (equivalente a US$ 9 mil).
A lei foi discutida durante anos e deveria ter sido votada no início de 2023, mas, apesar da sua “suavidade” em comparação com a FARA, ela atraiu uma acirrada oposição dos EUA, que mobilizaram uma constelação de ONGs locais para uma ruidosa campanha de manifestações populares contra ela, levando o então primeiro-ministro Irakli Garibashvili a retirá-la do processo legislativo. Foi preciso esperar a posse do novo premier, Irakly Kobadhidze, em fevereiro deste ano, para que a lei voltasse ao Parlamento, que a aprovou por larga maioria, apesar da ocorrência de novos protestos de rua. Entretanto, ainda foi preciso vetar o veto da presidente Salome Zourabichvili, justificado pelo argumento de que a lei seria contrária à Constituição do país e aos “padrões europeus” (Zourabichvili nasceu em Paris, foi diplomata francesa e passou a maior parte da vida fora da Geórgia).
A aprovação da lei atraiu uma irada resposta de Washington. Um porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller, afirmou que a medida “afasta a Geórgia da sua trajetória democrática e pode estigmatizar a sociedade civil e sufocar as liberdades de associação e expressão”, além de “alterar fundamentalmente o relacionamento dos EUA com a Geórgia (RT, 04/06/2024)”.
Dois dias depois, Miller anunciou sanções de viagem contra “algumas dúzias de pessoas” ligadas ao partido governante Sonho Georgiano, e adiantou que os EUA tomarão outras medidas se Tbilisi não voltar atrás e anular a lei (Antiwar, 06/06/2024).
Igualmente, a União Europeia divulgou uma nota afirmando que a lei contraria princípios e valores fundamentais do bloco e que estava considerando “todas as opções para responder a esses eventos”.
Curiosamente, as ferozes reações de Washington e Bruxelas não se repetiram em relação ao Canadá, cujo Parlamento acaba de aprovar uma legislação semelhante com uma tramitação em velocidade recorde, contemplando a criação de um registro de agentes estrangeiros e de um Comissário para o Controle da Influência Externa, além de restrições quantitativas dos funcionários de embaixadas – iniciativa que mal disfarça ter como alvo prioritário a Federação Russa.
A celeridade e as diferentes respostas aos dois casos não escaparam à língua ferina da porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova. Escrevendo em sua conta no Telegram, ela observou: “No fim, todo o processo levou um mês e meio – uma velocidade sem precedentes para uma
mudança tão importante no regime jurídico… Eu me pergunto como a parte da sociedade georgiana, que estava pronta para fazer qualquer coisa pelo cancelamento da lei sobre agentes estrangeiros, motivando suas ações pela lealdade aos ‘valores ocidentais’, se sentirá agora… Os parlamentares da Câmara dos Comuns admitem abertamente que não leram o documento em si, apenas estão votando a favor dele.
Assim, o regime [do primeiro-ministro Justin] Trudeau está arrastando uma versão melhorada e mais rígida da lei de agentes estrangeiros FARA dos EUA através de um parlamento que consente. É o Canadá. Nada pode ser mais ocidental (ou acidentado?). O bastião dos ‘valores ocidentais?’ (Sputnik Brasil, 20/06/2024).”
No Congresso Nacional, tramitam seis projetos de lei voltados para tornar mais transparente e restringir os financiamentos estrangeiros para ONGs brasileiras.
Um deles é o Projeto de Lei (PL) 1659/2024, proposto pelo deputado federal Filipe Barros (PL-PR), o qual impede que governos e partidos políticos estrangeiros financiem ONGs no Brasil, impõe um limite de 100 salários mínimos (cerca de R$ 140 mil) para doações de pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras a elas e exige que as ONGs especifiquem a destinação dos recursos recebidos.
“É para a proteção do nosso país, da nossa soberania nacional diante dos ataques que nós estamos vivendo, ao longo dessas últimas décadas, de países que tem interesse no não desenvolvimento no nosso país, atuando por meio de ONGs”, disse ele à Gazeta do Povo (18/05/2024).
Como exemplo de campanha financiada do exterior, Barros citou a oposição à exploração de hidrocarbonetos na Margem Equatorial Brasileira: “Um exemplo recente é a discussão sobre a exploração da Margem Equatorial. A ministra [do Meio Ambiente e Mudança do Clima] Marina Silva – que é ligada a diversas ONGs – por meio do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], que é vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, disse que a Petrobrás não poderia explorar o petróleo na margem equatorial. Ao mesmo tempo, diversas ONGs entraram na Justiça para impedir a exploração. Ou seja, as ONGs atuando como braço de uma política – a ministra Marina Silva – que tem uma pauta, que não é a do desenvolvimento nacional.”
A grande maioria das ONGs de primeira linha do aparato ambientalista-indigenista internacional que opera no Brasil depende fundamentalmente de recursos externos para o seu funcionamento, seja por meio de repasses de suas matrizes (casos do Greenpeace, WWF, World Resources Institute Brasil e outros) ou de doações de fundações privadas e órgãos governamentais de países como os EUA, Canadá, Reino Unido, Noruega, Alemanha, Holanda e a própria União Europeia. ONGs como o Instituto Socioambiental (ISA), Observatório do Clima, Instituto Clima e Sociedade e outras, simplesmente, não poderiam desempenhar as suas atividades atuais sem tais recursos.
Em síntese, mesmo diante do risco de quase inevitáveis pressões externas como as experimentadas pela Geórgia, é de grande relevância que o Brasil estabeleça certos limites ao financiamento dessa guerra irregular contra o seu desenvolvimento.