Por Geraldo Lino e Silvia Palacios.
Apesar das loas endereçadas aos seus “pais adotivos”, amplamente saudados como gênios dignos do Prêmio do Banco Real Sueco de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel (erroneamente conhecido como Prêmio Nobel de Economia), o Plano Real não foi uma criação exclusivamente brasileira.
A rigor, a crise das dívidas externas deflagrada pelo choque de juros aplicado pelo presidente do Sistema da Reserva Federal dos EUA, Paul Volcker, no início da década de 1980, que atingiu duramente países como o Brasil, Argentina, México e outros, foi “superada” a partir do chamado Plano Brady de 1989. O plano permitiu a reestruturação das dívidas e a sua conversão em dívidas internas, em troca da abertura das respectivas economias aos fluxos de liquidez gerados pela “globalização financeira”, de agressivos programas de privatização e da virtual desnacionalização de grande parte dos seus setores produtivos, o que ficou conhecido como o “Consenso de Washington”.
Na prática, a despeito das diferenças na aplicação das medidas, tais economias foram virtualmente “dolarizadas”, com todas as consequências negativas para a sua capacidade de geração de crédito próprio, limitando as respectivas políticas econômicas ao cumprimento do modelo neoliberal para a atração de investimentos externos, em geral, direcionados à aquisição de empresas nacionais e à especulação com o dólar e os juros internos. Não por acaso, todas compartilham índices de crescimento medíocres no período em questão.
Os 30 anos do plano, celebrados em 1º de julho, permitem uma oportuna retrospectiva sobre o que o jornal O Estado de S. Paulo chamou de “projeto de país” no editorial dedicado à efeméride (“Real não é só moeda, é projeto de país”, 01/07/2024).
De fato, como o mais antigo arauto dos interesses das classes dirigentes do Brasil em circulação, o vetusto “Estadão” está certo ao rotular o Real como um projeto. No caso, de vinculação do País aos “setores mais avançados do capitalismo”, no dizer do então presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que, como ministro da Fazenda do governo de Itamar Franco (1992-1994), bancou o lançamento do plano e surfou na onda da popularidade amealhada para vencer com facilidade duas eleições presidenciais.
Por “setores mais avançados do capitalismo”, entendam-se os mercados financeiros globalizados, que têm exercido uma corrosiva hegemonia sobre a economia mundial.
Inegavelmente, o Real foi bem sucedido ao debelar a hiperinflação crônica que assolou o Brasil durante décadas. Entre 1951 e 1993, não houve um único ano com inflação anual inferior a dois dígitos, sendo que na década de 1980 e nos primeiros quatro anos da de 1990 os índices variaram entre 100% e quase 3.000%. Nas últimas três décadas, o índice acumulado foi de “somente” 708%, registrando taxas anuais de dois dígitos em apenas quatro anos.
No entanto, o preço da relativa estabilidade monetária tem sido muito alto para o País, que viu a sua dinâmica de desenvolvimento estagnar e até regredir, no caso da industrialização, a grande conquista do período 1930-1980, com a sua participação no Produto Interno Bruto (PIB) revertendo aos níveis da República Velha. O próprio crescimento do PIB, que naquele período áureo variou entre 5-8,7% por década, despencou nas décadas de 1990, 2000 e 2010, respectivamente, para 1,5%, 3% e 0,3%, continuando sem qualquer perspectiva de mudança de tendência, a persistir a dinâmica imposta no Plano Real.
Por ironia, o que os editorialistas do “Estadão” atribuem ao atual governo deve ser estendido aos planejadores do Real: “Falta um projeto de País que promova um crescimento sustentável e duradouro, e não voos de galinha que caracterizam a economia brasileira há tantos anos.”
Em entrevista ao jornal O Estado de Minas (30/06/2024), o economista Diogo Santos, da Fundação Ipead, vinculada à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sintetizou:
“O Plano Real, em si, tinha nada mais que o objetivo de controlar a inflação. Mas, se o entendermos como o conjunto de mudanças macroeconômicas realizadas pelo governo federal nos anos seguintes, podemos dizer que significou uma adaptação do Estado e da economia brasileira para dar mais liberdade e garantias aos setores financeiros nacional e internacional.
“Para sustentar a estabilidade de preços, a taxa de câmbio e a taxa de juros foram mantidas em um patamar que prejudicava a produção nacional, principalmente a indústria e, portanto, a geração de empregos com remuneração maior. Ainda hoje o país sofre as consequências dos efeitos negativos desses fatores. Estamos vivendo uma desindustrialização.”
Efetivamente, o setor financeiro não tem do que reclamar, pois o Real converteu o Brasil em uma fábrica de juros, mantidos artificialmente elevados para atrair o ingresso dos dólares utilizados para “ancorar” a moeda nacional em baixos níveis inflacionários. A evolução da taxa Selic do Banco Central, desde a sua introdução em 1996, denota a opção feita. Ela registrou um valor médio de 26,6% no restante do governo Fernando Henrique; 13,7% nos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva; 9,9% nos de Dilma Rousseff; 10% com Michel Temer; 6,3% com Jair Bolsonaro (quando chegou a cair para 2%, mas disparou depois para 13,75%); o valor atual é de 10,5%.
Com tais índices, que superam em muito as taxas de retorno dos investimentos esperadas para a quase totalidade das atividades produtivas legais, não admira que a agropecuária tenha sido praticamente o único setor da economia real capaz de prosperar nas últimas décadas, juntamente com alguns bens minerais.
Sem surpresa, a formação bruta de capital fixo, proporção do PIB que mede os investimentos na economia real, tem caído sistematicamente desde a década de 1990, despencando para reles 16,5% em 2023. Para não comparar com os 41,6% da China, fiquemos com os 31,3% da Índia, 29,3% da Indonésia e 24,4% do México. Sem uma elevação do índice, pelo menos para cerca de 25%, será impossível deixar o pântano da estagnação.
Tal caminho tem levado o País a uma nefasta reprimarização econômica, a qual ameaça deixá-lo à mercê dos caprichos dos mercados globais de commodities, como na República Velha, e sem instrumentos para posicionar-se virtuosamente na dinâmica da economia do conhecimento do século XXI.
Em paralelo, outra característica comum a esses países foi o rápido enriquecimento dos técnicos responsáveis pela aplicação dos planos de estabilização monetária, muitos dos quais tornaram-se sócios de bancos e empresas financeiras após deixarem o governo, sendo ostensivo o exemplo dos “pais do Real”.
Em seu editorial laudatório, o próprio “Estadão” admite: “Foram medidas duras, custosas e que exigiram sacrifícios da sociedade, entre eles uma taxa de juros muito elevada, que atraiu o capital externo necessário para criar a âncora cambial.”
Três décadas sem desenvolvimento podem ser fatais as perspectivas de progresso de qualquer país. É, pois, mais que passada a hora de o Brasil retomar o caminho do qual foi excluído por seus pretensos “salvadores”.