
Por Raphael Machado.
O diferencial fundamental do sistema sociopolítico venezuelano são as Forças Armadas, que naquele país desempenham um papel de sustentáculo institucional muito maior do que em outros países ibero-americanos.
Ainda que isso tenha algumas raízes profundas, esse papel das Forças Armadas só se concretizou plenamente a partir de Hugo Chávez.
Simón Bolívar já pensava os militares como tendo papel político em seu projeto de uma Grã-Colombia. Esse exército bolivariano, de fato, teve papel central na independência de boa parte dos países do continente ibero-americano; e apesar dos planos de Bolívar terem fracassado graças às conspirações maçônicas das oligarquias locais, um certo senso de orgulho e de missão política permaneceu um traço dos militares venezuelanos, herdeiros mais próximos das principais forças de Bolívar.
Certamente também desempenha um papel no diferencial militar venezuelano o fato de que a sua profissionalização contou com a tutela de uma missão militar prussiana.
Longe de se verem como “agentes apolíticos”, os militares venezuelanos se viam como guardiões do Estado, e a educação prussiana (país caracterizado, também, por um protagonismo político militar) reforçou entre os militares um senso de honra corporativa e de dever perante o Estado.
Mais um diferencial se encontra na educação militar venezuelana, especialmente a partir do Plano Andrés Bello, de 1971, mesmo ano em que Chávez inicia sua educação militar.
Por esse projeto pedagógico, a Academia Militar da Venezuela deveria operar como uma instituição de ensino superior, oferecendo não uma educação técnico-militar apolítica, mas também uma educação em disciplinas humanísticas (história, ciência política, sociologia, etc.), mas com um viés nacionalista.
Enquanto isso, nos outros países do continente, o currículo militar era ou puramente técnico, feito para formar idiotas obedientes, ou então permeado de conteúdo ideológico atlantista. De um jeito ou de outro, excetuando na Venezuela, as academias militares de todo o continente estavam organizadas segundo inspiração e influência estadunidense.
Nesse sentido, o Chávez não é um fenômeno individual. Toda a sua geração de oficiais, bem como dos oficiais que se seguiram, foram gerações de oficiais nacionalistas com um amplo conhecimento em vários campos do conhecimento e um vínculo profundo com os interesses de sua pátria e o projeto de Simón Bolívar, de quem se consideravam herdeiros.
Todos esses elementos não foram senão reforçados pelo próprio Hugo Chávez a partir do momento em que ele chegou ao poder – ora, o próprio Chávez sendo um alto oficial militar.
O resultado é um sistema sincrético cívico-militar, com a politização dos militares (que segundo Chávez deveriam ser soldados políticos) e a militarização da sociedade.
Na Venezuela, por exemplo, muitos ministérios e outros cargos administrativos são ocupados por militares, os quais segundo o Judiciário, aliás, podem participar livremente de atividades políticas. A polícia é, também, controlada por militares, bem como o são os órgãos de inteligência – por se considerar que como o país está sob cerco e ameaça constante, só sob mando militar esses aparatos podem funcionar com certa eficiência.
Os militares, ademais, têm importante papel econômico, dirigindo a PDVSA e várias outras empresas estratégicas, tanto da indústria bélica como de setores logísticos, transportes e outros.
Necessário, também, mencionar – já que falamos em militarização da sociedade – a Milícia Bolivariana, um corpo de cidadãos armados que conta com centenas de milhares de membros.
Nessas condições, o que vemos é um sistema sui generis em que as forças políticas fundamentais são: Presidente-Exército-Povo.
Mesmo que o povo esteja dividido (e não venham me falar maluquices sobre 80% de voto para o opositor Edmundo Urrutia González, que isso é invenção) e polarizado radicalmente entre apoiadores e opositores de Maduro, enquanto as Forças Armadas forem homogêneas e estiverem alinhadas com o Presidente e estiverem sincronizadas com a parte do povo que apoia o governo, uma mudança de regime é impossível.
Aliás, é essa a equação que demonstra retrospectivamente a improbabilidade das narrativas de que González derrotou Maduro com 70-80% do voto. Nenhum sistema, mesmo que tenha o monopólio legítimo da violência através do apoio da polícia e dos militares, fica de pé contra um 80% de inimigos em meio ao povo.
Se Maduro permanecer governando a Venezuela, portanto, que é o que parece que ocorrerá, então é porque a oposição está realmente mentindo.
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