Marcelo Gullo (foto) é um cientista político e analista internacional argentino, autor de livros como “Argentina-Brasil: a Grande Oportunidade” e “A Insubordinação Fundadora: Breve História da Construção do Poder pelas Nações”, além de obras mais recentes em que expõe seu pan-hispanismo, como “Carmen Iglesias – ou Madre patria” (2021), “Nada por lo que pedir perdón” (2022) e “Lo que América le debe a España” (2024), seu mais recente livro, ainda sem edição em português.
Sua luta é contra a difusão da Lenda Negra, que associa o atraso da América Espanhola à colonização espanhola, incluindo a atividade missionária da Igreja Católica junto aos indígenas. Trata-se de uma narrativa de britânicos e holandeses, principalmente, contra seus rivais espanhóis e que foi absorvida pelas elites americanas durante e após o processo de independência da Coroa Espanhola. Por sua vez, seu conceito de hispanidade é amplo o suficiente para abarcar Portugal e Brasil.
A tese que defende é que a América Espanhola era relativamente rica antes da Independência, sendo partes constituintes do Império Espanhol como vicerreinados. O atraso veio quando esses se fragmentaram em diversos países frágeis e que se tornaram dependentes financeiramente do Reino Unido e meros exportadores de matérias primas.
Publicamos aqui a entrevista concedida ao portal El Debate, em que expõe brevemente as ideias contidas em suas últimas obras.
-O que a América deve à Espanha?
-A essa pergunta, podemos responder com uma citação de um homem que ninguém poderia acusar de ser um católico tradicional ou retrógrado. Ele foi um homem que enfrentou a invasão americana com uma pistola na mão: o general César Augusto Sandino, cuja mãe era índia, empregada doméstica das classes sociais mais baixas da Nicarágua. Sandino disse: “Eu vi antes, há muito tempo, com indignação, o trabalho colonizador da Espanha, mas hoje o vejo com profunda admiração. A Espanha nos deu sua língua, sua civilização e seu sangue. Preferimos nos considerar como índios espanhóis da América”. Também posso acrescentar a frase de um homem nascido em Porto Rico, formado em Harvard e Princeton, que tinha uma mãe negra: Pedro Albizu Campos. Em um discurso em 12 de outubro, ele disse: “Aquele que não se orgulha de sua origem nunca terá valor algum, porque começa desprezando a si mesmo. É por isso que reverenciamos o nome da Espanha, porque ele representa a ciência, o direito, as ciências positivas, a ciência, a moralidade e a tradição cristã”.
E por que ambos disseram isso? Porque, antes da chegada da Espanha, a América era um inferno. Essa é a premissa que está escondida do povo espanhol e do povo americano. Era um inferno, havia canibalismo, antropofagia. Se um plebiscito popular tivesse sido realizado cinquenta anos após a chegada da Espanha, para ver se a Espanha deveria ficar ou sair, a Espanha teria vencido por 99% dos votos. Não é verdade que estávamos no paraíso, nus, em Tucumán, bebendo cocos, comendo mangas e fazendo amor livre. Não, os povos viviam em guerra permanente uns contra os outros e estavam se devorando mutuamente. Depois veio a paz e o canibalismo acabou. Noventa por cento da população vivia mal, sujeita a terríveis injustiças, como a antropofagia, que reinava não apenas no México, mas também na Colômbia, onde os pijaos comiam os chichas ou capturavam as mulheres chichás e as engravidavam e, aos 12 anos de idade, tiravam-lhes os filhos para comê-los. A Espanha trouxe a pacificação da América e a libertação espiritual da América dos deuses do terror.
-No livro, você fala sobre o aspecto civilizatório, com suas instituições, e o aspecto religioso, a evangelização. Esses são os dois pontos principais que devem ser destacados?
-E mais a evangelização do que o aspecto civilizatório. Porque a América era um inferno, não um paraíso. Um inferno onde os deuses eram deuses do terror que geraram uma cultura de terror e morte. Se você observar as esculturas pré-colombianas, tudo o que verá são imagens de pessoas sofrendo, porque os artistas expressam a realidade de seu povo: nunca há um rosto feliz na arte pré-colombiana. Todos os rostos expressam terror e morte. Quando o domínio espanhol se afrouxou e a revolta eclodiu em 1810, os povos indígenas eram contra a independência.
-A favor da independência estavam os filhos de espanhóis.
-Sim, e espanhóis. Porque também havia espanhóis do lado pró-independência. Na verdade, foi uma guerra civil em que a Grã-Bretanha levou a melhor. Foi uma obra-prima da política externa britânica.
-O livro fala muito sobre o México. Um país do qual, vinte e cinco anos após sua emancipação, os Estados Unidos tiraram um terço ou metade de seu território (Arizona, Califórnia, Utah, Colorado, Novo México…). O “império predatório” não eram os Estados Unidos?
-Dou grande ênfase ao México, porque a origem da falsa política é sempre a falsa história. Se há um lugar onde a história foi completamente falsificada, onde as pessoas sofreram uma lavagem cerebral com uma história falsa, esse lugar é o México, porque os sucessivos governos mexicanos ensinam aos mexicanos que o subdesenvolvimento e a pobreza do México vêm da Conquista, e acontece que, quando o México se tornou independente, era muito, muito mais rico do que os Estados Unidos. Não havia nenhuma cidade que pudesse se comparar. Havia comida melhor no México do que nos Estados Unidos. Era um país muito mais desenvolvido. Mas a Espanha é culpada pelo subdesenvolvimento, para esconder o fato de que ela é a culpada, porque é como um neto incapaz de manter a herança que recebeu. Eles perderam metade de seu território para os Estados Unidos. E não perderam rocha e areia; perderam a Califórnia, que fez dos Estados Unidos o maior produtor de ouro do mundo a partir de 1849.
Um ano depois que a Califórnia foi tomada do México, a Califórnia tornou os Estados Unidos o maior produtor mundial de ouro; ouro que financiou a construção de infraestrutura, como a ferrovia. E em 1910, graças ao petróleo do Texas, que era mexicano, os Estados Unidos se tornaram o maior produtor de petróleo do mundo. Como eu disse, a origem da falsa política está na falsa história. O mesmo acontece na Espanha, porque há uma história falsa: eles criticam a conquista espanhola na América porque, na realidade, o que querem criticar é a Reconquista. Há um setor político na Espanha que falsificou a história. Eles falam de uma coexistência [em al-Andalus] que nunca existiu. Para eles, toda a história da Espanha é um horror e um erro. E eles acham que a Espanha nunca deveria ter existido.
-O ouro extraído pelos Estados Unidos após a anexação desses territórios excede todo o ouro que foi levado das Américas para a Espanha durante os três longos séculos de dominação?
-Não houve dominação, porque a América nunca foi uma colônia da Espanha. Eram vice-reinados. E apenas 20% do ouro extraído era levado para a Espanha; 80% do ouro ficava no México.
Pode-se dizer que a extensão da Lenda Negra é uma forma de justificar a própria identidade ou de buscar uma identidade?
-Não, não, pelo contrário; é a negação da identidade. A Lenda Negra é a negação da identidade. É como se eu matasse minha mãe. É um álibi de uma classe política corrupta e inepta que quer culpar a Espanha pelo subdesenvolvimento de seus países, que é uma consequência de sua inutilidade e roubo. É por isso que o Sr. Maduro culpa a Espanha pela pobreza da Venezuela, quando ele mesmo é o culpado por ser inepto e corrupto.
-O senhor destaca neste livro que a América Espanhola era, antes da independência, muito mais desenvolvida do que os Estados Unidos. O que aconteceu para reverter a situação?
-Muito simples: a América, quando se torna independente, diz não à política britânica. A política britânica era transformar as colônias em semicolônias com sua própria bandeira e hino, mas dependentes da Inglaterra por meio da exportação do Iluminismo – para banir a ideia de transcendência do coração das massas – e do livre comércio, para que não se desenvolvessem industrialmente. As repúblicas americanas aceitam a proposta britânica do Iluminismo e do livre comércio. E se condenam a ser sempre produtoras de matérias-primas, enquanto os Estados Unidos optam por sua própria industrialização.