
O presidente eliminou qualquer ambiguidade sobre como Moscou responderá a quaisquer novas ameaças em seu quintal
Por Sergey Polataev.
Em 26 de setembro, o presidente russo Vladimir Putin anunciou a atualização dos Fundamentos da Política de Estado da Federação Russa na Área de Dissuasão Nuclear. O documento revisado implica que, sob certas condições, Moscou pode considerar uma guerra por procuração contra ela como justificativa para o uso de armas nucleares.
Táticas de salame
As doutrinas tradicionais de dissuasão nuclear remontam à Guerra Fria e foram desenvolvidas tendo em mente as principais potências mundiais e alianças militares. O pressuposto implícito é que é improvável que grandes Estados ataquem uma potência nuclear, pois correm o risco de enfrentar um ataque retaliatório maciço.
Entretanto, o conflito na Ucrânia criou uma realidade nova e sem precedentes: O Ocidente está travando uma guerra por procuração contra a Rússia que demonstra pouca preocupação com sua própria autopreservação. Pelo menos sob o controle de sua atual liderança.
Kiev ataca constantemente os territórios históricos da Rússia. Incidentes que aconteceram “pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial” são regularmente relatados nos noticiários: por exemplo, um centro regional sendo bombardeado na Rússia, instalações militares atacadas na região do Volga ou no Kuban, ou tanques de fabricação alemã entrando na região de Kursk.
Também houve rumores de ataques às instalações das forças nucleares estratégicas da Rússia. Essas agressões são oficialmente reconhecidas como gatilhos para uma resposta nuclear. Independentemente de esses rumores serem verdadeiros ou não, esse comportamento está perfeitamente alinhado com a lógica de Kiev e seus patrocinadores ocidentais. O objetivo é usar ataques isolados de drones conduzidos por uma força substituta para minar a doutrina nuclear da Rússia ou, falando em termos de TI, hackeá-la por meio de uma “exploração de dia zero”.
Afinal, Putin realmente iniciaria uma guerra nuclear por causa de um drone que caiu perto de uma base de bombardeiros estratégicos? E quanto a dois drones? Ou dez? Ou talvez alguns drones combinados com um míssil de cruzeiro de fabricação ocidental?
Isso exemplifica as clássicas “táticas de fatiamento de salame”: pressionar gradualmente o oponente, forçando-o a mudar sua posição estratégica sem fornecer bases suficientes para que o oponente mobilize suas forças primárias (no caso da Rússia – nucleares).
Ficando atrás das linhas
A única linha vermelha real entre a Rússia e o Ocidente – e, especificamente, entre Moscou e Washington – é algo que forçaria um dos lados a aumentar drasticamente o conflito.
Tanto o Kremlin quanto a Casa Branca estão aderindo atualmente à chamada estratégia de guerra limitada. Por quê? Porque a Rússia não pode se dar ao luxo de dar um tiro na cabeça por causa da Ucrânia e, da mesma forma, o Ocidente não quer se explodir por causa da Rússia. Qualquer escalada dramática poderia resultar em um resultado como esse, tornando a situação imprevisível mesmo sem o uso de armas nucleares.
Nem a Rússia nem os EUA desejam uma escalada no conflito. Em vez disso, ambos têm como objetivo mantê-lo dentro de seus limites atuais. É como na fábula sobre a cobra e a tartaruga: se um lado fizer um movimento repentino, o outro é forçado a responder, o que pode levar a consequências terríveis. Para a Rússia, uma escalada significa mobilizar todos os recursos, uma situação que é repleta de perigos para a nação. Para o Ocidente, a escalada significa intervir diretamente, sem garantia de sucesso e com alto risco de perdas pesadas ou até mesmo de uma troca nuclear.
Por enquanto, a Rússia impôs uma guerra de desgaste ao seu adversário. Claramente, o Kremlin acredita que essa estratégia tem mais chances de dar certo.
Os EUA parecem entender isso e querem atrapalhar o plano do Kremlin aumentando os custos, mas mantendo tudo dentro dos limites atuais. É por isso que eles recorrem às chamadas táticas de salame.
Alguns especialistas acreditam que a proibição de ataques com mísseis de longo alcance nas profundezas do território russo é o único acordo real existente entre Putin e [o presidente dos EUA, Joe] Biden. Não é que tais ataques mudariam significativamente as coisas, mas isso serviria como referência, um ponto de referência que é mais ou menos compreensível para ambos os lados.
Se você tentar nos destruir por meio de uma força proxy, nós destruiremos tanto o proxy quanto você
No entanto, mudanças estão prestes a acontecer na Casa Branca. Se os acordos mencionados acima realmente existirem, o Kremlin não pode ter certeza de que o próximo governo irá aderir a eles.
É por isso que a Rússia precisava enviar um sinal claro ao Ocidente (e ao mundo inteiro) sobre a situação atual e como a Rússia responderá a várias ações tomadas pelo Ocidente.
Em primeiro lugar, Moscou não considerará o uso de armas nucleares enquanto mantiver a iniciativa militar. Assim, a probabilidade de usar armas nucleares depende de seu sucesso militar: se a vitória não for possível por meios convencionais, um ataque nuclear se torna uma opção.
Em segundo lugar, por causa disso, o principal oponente da Rússia (os EUA) não pode travar uma guerra contra a Rússia diretamente e não pode armar o Estado proxy a ponto de mudar o curso do conflito. Portanto, os EUA devem permanecer à margem, observando como seu representante perde gradualmente a guerra. Nesse sentido, a dissuasão nuclear é atualmente eficaz contra os EUA e o Ocidente, pelo menos até que a administração em Washington mude. A nova doutrina de Putin serve como uma mensagem e um aviso para o sucessor de Biden.
Em terceiro lugar, o Estado proxy (Ucrânia) está tentando encontrar os pontos fracos da Rússia e infligir um golpe doloroso. À medida que a situação no front piora para as forças ucranianas, elas podem recorrer a medidas mais desesperadas, como o lançamento de ataques a locais de implantação de mísseis estratégicos. Essas ações podem ser eficazes. Isso provocará uma resposta nuclear da Rússia? É quase certo que não. O Kremlin não está considerando um ataque nuclear à Ucrânia.
Por que não? Porque a Ucrânia não representa uma ameaça significativa o suficiente para justificar o início de uma guerra nuclear. A Rússia pode lidar com a Ucrânia por meios convencionais de guerra. E mesmo que alguns incidentes possam ser bastante dolorosos, eles não mudam essa realidade.
De modo geral, a doutrina de Putin pode ser resumida da seguinte forma:
Combater os adversários mais fracos com forças convencionais e usar a dissuasão nuclear para evitar que as grandes potências intervenham de forma a transformar esses adversários mais fracos em ameaças sérias.
Ou, em outras palavras: A Rússia garantirá sua segurança da maneira que achar melhor, usando o escudo nuclear para deter qualquer um que tente interferir.
Enquanto isso, a Ucrânia serve como um exemplo vívido do destino que se abaterá sobre qualquer nação que travar uma guerra contra a Rússia: ela será devastada, sua indústria e infraestrutura serão destruídas e ela sofrerá um colapso demográfico e econômico; quanto ao Ocidente, ele oferecerá palavras vazias de apoio, mas, na prática, empurrará seu representante para o abismo.
Um dos resultados da operação militar da Rússia deve ser uma conscientização crescente entre os países vizinhos de que procurar uma briga com Moscou é uma má ideia e que a OTAN não será capaz de protegê-los.
Além disso, o Ocidente deve reconhecer que, ao incitar os vizinhos da Rússia a entrar em guerra contra ela, corre o risco de provocar uma guerra nuclear.
Essa é uma abordagem que James Monroe certamente teria aprovado.