Por Raphael Machado.
Se analisarmos os posicionamentos concretos da Alemanha contemporânea, especificamente em relação à política externa, podemos identificar uma russofobia excessiva – com um consequente apoio exacerbado à Ucrânia, que chega ao ponto da remessa de grandes quantidades de equipamento militar e o apoio declarado e convicto ao genocídio perpetrado por Israel na Palestina, com Scholz dando uma carta branca para atrocidades que são, obviamente, identificáveis como limpeza étnica.
Poderíamos, ainda, acrescentar aí uma dedicação profunda ao projeto da União Europeia, o qual, na prática (pelo menos economicamente) coloca a Alemanha em uma posição “hegemônica” no continente.
Com o que isso parece? Facilmente seria possível responder: “nazismo”.
É nessa linha, aliás, que muitos analistas geopolíticos/militares interpretam as coisas. Uma linha argumentativa comumente repetida por alguns simpatizantes da Rússia é a de que “os alemães não aprenderam nada com o passado”, que “a Alemanha não foi realmente desnazificada”, que “o Tribunal de Nuremberg não foi o bastante”, e que eles estavam agora retornando “à mesma ideologia”.
Aqui no Brasil, pelo menos, alguns comentários inclusive associam todas essas tendências à ascensão do AfD (Alternativa para a Alemanha), como se o crescimento de um partido nacionalista classificado como “extrema-direita” pela mídia de massa, por lógica, só pudesse estar associado a todas essas tendências, como resgate do “nazismo”.
O fato de que o AfD é o partido mais objetivamente pró-russo na Alemanha, o mais contrário a qualquer intervencionismo ou apoio militar alemão em relação a conflitos ao redor do mundo, e que ele é a favor, no mínimo, de uma descentralização e enfraquecimento da UE obviamente passa batido pelas pessoas.
Mas mesmo pessoas que sabem que o AfD não é um partido neonazista e que ele, obviamente, não tem nada a ver com a política externa de Olaf Scholz, não raro se apegam à narrativa da “repetição dos erros do passado” e da falta de uma punição suficiente pelas atrocidades nazistas.
Para acreditar nisso, porém, é necessário não saber nada da história alemã além dos fatos ligados à Segunda Guerra Mundial e aos últimos 10-20 anos da política alemã – e nada sobre a psicologia dos povos.
A realidade é exatamente o oposto da explicação simplória de que “os alemães voltaram a ser nazistas”.
Qual “nazismo” é esse em que Olaf Scholz nunca é visto cantando o próprio hino? Ou no qual Angela Merkel manda retirar uma bandeira alemã da comemoração de sua vitória eleitoral? Ou no qual os chanceleres fazem questão de obsessivamente aumentar os fluxos imigratórios, e ainda privilegiam os recém-chegados com infinitos benefícios em relação aos nativos?
A elite alemã contemporânea não parece realmente preocupada com a soberania de seu país, não acredita, aliás, que exista algo como um “povo alemão” ou uma “cultura alemã”. Ao contrário, as publicações mainstream insistem que “qualquer um pode ser alemão” e que não há qualquer especificidade cultural na Alemanha.
Aliás, a primeira vez em que se tentou impor qualquer tipo de critério “qualitativo” na aceitação de imigrantes se deu este ano…em função de se o imigrante apoia ou não apoia Israel – ou seja, em função de um outro país, e não do seu próprio.
Os padrões são claros e óbvios demais para se negar.
Ao contrário do que dizem alguns analistas, a Alemanha russofóbica, pró-genocida e imperialista que vemos hoje…é o resultado direto das políticas que o Ocidente impôs à Alemanha no pós-Segunda Guerra Mundial.
A Segunda Guerra Mundial foi a primeira guerra na história à qual se tentou dar um caráter jurídico após o seu término. Os alemães não haviam apenas cometido um erro de juízo, sido arrogantes e sido derrotados. Eles eram “criminosos” e precisavam, portanto, ser julgados.
Naturalmente, o julgamento em questão não seguiu qualquer princípio jurídico tradicional, mas as potências ocidentais achavam necessário consagrar a sua vitória militar com um halo moral pacificado por uma sentença judicial. Isso, aliás, lhes ajudaria a moldar a arquitetura internacional do pós-guerra.
Em si, essa decisão de judicializar o resultado de uma guerra, para oficializar o seu caráter “moral”, deriva objetivamente do liberalismo e da fase na qual ele se encontrava naquela altura. O liberalismo, por seu caráter universalista, se desenvolveu em uma pretensão de unificação mundial sob a égide de princípios civilizacionais unificados (os do Iluminismo). Essa pretensão se apoiava em um discurso que transformava determinados países em porta-vozes da “humanidade”, encarregados de fazer “progredir” o mundo, contra aquelas forças “reacionárias” que estariam na “contramão da história”.
Como Carl Schmitt demonstrou, o discurso humanitário conduz comumente ao imperialismo e, não raro, às atrocidades mais brutais e grotescas; porque quem se opõe aos porta-vozes da “humanidade” naturalmente não pode ser considerado “humano”, e ele não se verá, então, protegido pelas mesmas garantias atribuídos às “boas ovelhas”.
A partir de Nuremberg, cada jovem alemão foi ensinado a denunciar seus pais e a ter vergonha deles. E os mais velhos foram obrigados a abaixar a cabeça e a se sentirem culpados das “maiores atrocidades da história humana”. Na prática, o Holocausto substituiu a Cruz como religião oficial.
Era necessário, diariamente, se arrepender e pagar penitência pelos “crimes dos pais” (e depois, dos avós). Seja abrindo as fronteiras ou enchendo Israel de dinheiro e armas, cada dia era uma expiação, uma maneira dos alemães sinalizarem virtude por meio da mais profunda autonegação na história humana.
O hino nacional foi mutilado. Os alemães não podiam cantar que amavam o seu país acima de tudo, tampouco cantar as qualidades e belezas de seu país, apenas sobre “paz” e “fraternidade” universais. Tudo que parecesse patriotismo ou identitarismo estava banido.
O principal aparato de propaganda da elite alemã, a Deutsche Welle, chegou a ridicularizar os descendentes de colonos alemães que ainda tentavam preservar as tradições de seus antepassados em outros países do mundo, como no Brasil, como pessoas estúpidas e atrasadas que não entendiam a “nova Alemanha”.
É muito óbvio que tudo isso culminaria nas posições geopolíticas desastrosas da Alemanha contemporânea.
País castrado, afundado no etnomasoquismo, a elite alemã não ousa levantar a voz mesmo após os EUA destruírem o NordStream, afundando a sua economia.
O “neoalemão”, fruto do ascetismo apátrida, jamais levantaria armas para defender seu país – ou mesmo a si mesmo e à própria família – mas para defender a “humanidade”, a “democracia”, as “minorias” e os “direitos humanos”, ele naturalmente seria capaz de invocar um holocausto nuclear. Valores universalistas e humanitários só podem ser tratados em termos absolutos.
A Rússia, exatamente no sentido contrário, afirma a própria singularidade. Nega a ideia de “princípios universais”, reabilita a ação militar em prol da sobrevivência nacional, se nega a se diluir no nada do multiculturalismo e, naturalmente, rechaça a ideia liberal pós-moderna de “democracia das minorias”. É, para todos os efeitos, a “encarnação contemporânea do nazismo” para a perspectiva ocidental.
O “neoalemão”, portanto, não poderia senão vociferar contra a Rússia, porque ao lutar contra a Rússia o “neoalemão” luta contra a imagem deturpada que ele tem do próprio passado e consegue, assim, uma mínima absolvição.
E é precisamente absolvição por seus “pecados” que a Alemanha busca apoiando Israel. É necessário entender que por causa do Holocausto e do tipo de tirania cultural e informacional imposta à Alemanha, a figura do “judeu” (tal como imaginada pelos alemães) passou a adquirir um caráter absolutamente positivo e infinitamente vitimado. Vê-se que os alemães são um “povo de extremos”, já que na mesma medida em que o “judeu” é visto como “santo”, ele era visto como “demônio” apenas umas décadas antes…
Os sionistas sabem manipular esse status de “vítima perpétua” que os judeus têm com os alemães de maneira magistral. O juízo da “vítima” é como um machado que pende perpetuamente sobre o pescoço do alemão, perpetuamente atormentado pelo passado que ele foi doutrinado a temer e abominar. Apenas a “vítima” pode garantir absolvição e, portanto, salvação – mas essa “vítima”, sagaz e oportunista, adia perpetuamente a absolvição para poder extrair e extorquir o máximo possível o alemão penitente.
Mesmo o projeto “europeu” não é, realmente, o resgate do europeísmo civilizacional nazista. É o esforço do alemão por universalizar a sua própria doença niilista por um expansionismo da autonegação. A União Europeia não é outra coisa.
É por isso que é delírio achar que na Alemanha de Scholz há algum “retorno ao ultranacionalismo” e que os alemães precisam ser ainda mais doutrinados sobre os crimes do nazismo.
Ao contrário, a cura para a doença alemã está em eles voltarem a ter a permissão de ser um povo como qualquer outro, que ama a si mesmo, e não se vê como veículo de qualquer projeto universalista, mas apenas como um pequeno rincão do mundo.