
O desastre no fornecimento de energia na cidade de São Paulo é fruto de trinta anos de desmonte do sistema elétrico brasileiro. O que antes era um sistema público que gerava e distribuía energia a preços módicos aos consumidores, hoje se tornou caro e ineficiente, permitindo a entrada de empresas no mercado que não têm as qualificações necessárias para a prestação de um bom serviço de energia.
Políticas adotadas pelos governos desenvolvimentistas de 1930 a 1980 exigiram a expansão do sistema elétrico, até então controlado nos sistemas de geração e distribuição, por empresas estrangeiras que pouco investiam para fazer jus ao aumento de demanda que o processo de industrialização criava.
Em 1962, foi aprovada a lei que cria o sistema Eletrobrás, posta em prática pelos governos militares, que teve por consequência estatizar todo o sistema elétrico brasileiro. Com o tempo, empresas de energia foram encampadas, como foram o caso da Light, no Rio de Janeiro, e a Eletropaulo, no estado de São Paulo, criada por iniciativa do então governador Paulo Maluf, em 1981, com a estatização da Light SP. A Eletropaulo veio a se tornar a maior distribuidora de energia do país. Nas décadas de 1970 e 80, mesmo com o crescimento econômico acelerado, inflação alta e crises, incluindo fenômenos climáticos como secas e enchentes, o sistema elétrico não deixava os consumidores na mão.

Eis então que vieram os anos 1990 e os governos de então se comprometeram em desestatizar o sistema elétrico, com a promessa de atrair investidores privados. O Brasil seguia a cartilha do FMI e do Consenso de Washington, depois de submeter ao Fundo para reestruturar sua dívida externa. O desmonte do sistema começou no primeiro governo FHC (1994-1998), com a reestruturação da Eletrobrás e venda das distribuidoras Light RJ e Eletropaulo, que, com a privatização, passaram para o controle de empresas e fundos estrangeiros.
Os defensores da privatização apregoavam que assim poderiam entrar novos investidores e que poderia haver concorrência no mercado de energia. Contudo, esquecem um detalhe importante: o sistema elétrico nacional foi desenhado, nas décadas de grande crescimento, de forma centralizada no controle do Estado. A mera privatização, por leilões públicos de ações, fez passar o controle do monopólio da geração, transmissão ou distribuição de energia do setor público para o setor privado. Sem ganhos para os consumidores, mas só para os controladores.
A transição do sistema estatal para o privatizado veio no bojo da Reforma Administrativa do governo FHC, encabeçada por Luís Bresser Pereira, ex-ministro da Fazenda de Sarney. Previa a desestatização de empresas públicas de serviços públicos, como energia, água, telefonia, transportes etc. acompanhada da criação de uma figura estranha ao desenho institucional do Estado brasileiro, definidos nos moldes do Decreto-Lei 200 de 1967: a agência reguladora.
As agências reguladoras foram criadas, no âmbito da União e dos estados, para regular e acompanhar a prestação dos serviços públicos pelas empresas atuantes no setor, dentre outras funções elencadas nas respectivas leis que autorizaram a criação de cada uma delas. No entanto, nessas prerrogativas vêm deixando muito a desejar. Dessa maneira, a literatura sobre direito regulatório criou o termo captura de interesses, para explicar a situação em que o regulador se deixa levar pelo interesse dos reguladores.
Diante da situação de emergência na Enel, a empresa de distribuição que atende São Paulo e boa parte do Estado do RJ, a Controladoria Geral da União (CGU) decidiu fazer uma auditoria na Agência Reguladora de Energia Elétrica (ANEEL) para apurar possíveis omissões.
A Enel assumiu o controle da Eletropaulo, a empresa criada por Paulo Maluf, em 2018, deApois de adquirir as ações da companhia em leilão na B3 (a antiga Bovespa) sob controle da AES Corporation, uma empresa canadense de energia, mas com sede em Arlington, Virgínia (EUA). A Enel foi criada em 1962 pelo Estado italiano, mas teve seu capital aberto nos anos 1990: o Estado controla cerca de 24% do capital, mas o restante está nas mãos de investidores privados.
Na matriz, a Enel segue as diretrizes impostas pelo governo italiano e por investidores privados: no governo parlamentar de Georgia Meloni, o controle sobre a Enel caiu nas mãos de Giancarlo Giorgetti, ministro da Fazenda desde outubro de 2022. Membro do partido Lega Nord, Giorgetti é adepto de um liberalismo extremo, que quer fazer das empresas estatais uma fonte de rendas para sanar o déficit e a dívida pública em seu país. Mesmo que a custa de investimentos necessários para prestação de bons serviços.

Semelhante orientação seguem os investidores privados da Enel. Um deles, que vem ganhando proeminência nas negociações dentro do conselho de acionistas da empresa, é o fundo Covalis Capital, especializado em empresas de energia mundo a fora. Este, de acordo com a imprensa italiana, estaria interessado em desinvestir na Enel e direcionar seu capital para investimentos em “energia limpa”, na linha ESG (Enviromental Social Governance) de transição energética.
Os efeitos dessa política de governança corporativa são sentidos pelos consumidores: falta de investimento significam demissões na Enel e problemas na infraestrutura. Enquanto isso, a ANEEL e o Ministério de Minas Energia apenas observam, já que a União é que o poder concedente do serviço público, apesar de rede de distribuição ser municipal – mais um abacaxi da “deforma” do sistema elétrico dos anos 1990. A reforma da década de 1990, por sua vez, definiu o modelo do sistema elétrico em 13 anos de governos Lula e Dilma, somando-se o interregno Temer e o governo Bolsonaro. Há denúncias de que, no meio da crise em SP, que deixa centenas de milhares de consumidores de energia sem luz, servidores da ANEEL estariam se divertindo em uma festa de Halloween.

Um sistema elétrico eficiente não precisa ser necessariamente estatal, e, na geração, o setor privado deve se fazer presente, sobretudo nas energias renováveis como solar e eólica, que demandam menos investimento e podem ser implementadas até mesmo por consumidores ou grupos destes, dependendo do empreendimento e da distância dos consumidores dos grandes centros. Contudo, para os grandes empreendimentos faz-se necessário a presença de empresas comprometidas com a prestação contínua do serviço, contemplando investimentos e planos de ampliação da infraestrutura para atender o aumento da demanda.
No Brasil, o modelo adotado de privatização do sistema elétrico permitiu a entrada de empresas que muitas vezes não preenchem esses requisitos. E como o setor elétrico foi construído de forma centralizada, criam-se monopólios para empresas privadas mais interessadas em gerar lucros e dividendos para seus acionistas em detrimento dos consumidores. Os entes reguladores, capturados por interesses alheios, fazem vista grossa e permitem aumentos nas tarifas mesmo assim.
Com trinta anos de abertura, seguimos com monopólios privados na distribuição de energia. Ainda que nos grandes centros dos EUA, por exemplo, haja concorrência entre distribuidores que permitem a saudável concorrência entre empresas, o mesmo não acontece no Brasil, até mesmo porque, ao contrário de lá, no nosso sistema elétrico foi desenhado e se estruturou de forma centralizada, sob controle de empresas públicas. Assim sendo, o melhor que podemos fazer é repensar a reestatização do setor de forma gradativa. O que vem se tornando tendência até na Europa.
A proposta de reestatização ainda esbarra em fortes resistências, não só das habituais do mercado financeiro, mas dos representantes setor produtivo. Até porque nos governos da Nova República, sobretudo do PT, as empresas estatais foram alvo de interferência política indevida e de políticas tarifárias mal-sucedidas, comprometendo a boa gestão e o interesse público. Assim, é preciso que estas fiquem insuladas dessas pressões e foquem na eficiência do serviço e no atendimento ao consumidor.
Contudo, a entrada de empresas privadas no setor não é por si só negativa, desde que haja critérios técnicos e financeiros, além de expertise no setor, para que possam se tornar concessionárias do serviço de energia. Nesse sentindo, podem ser criadas linhas de crédito e outras políticas de fomento para as empresas no setor, de preferência com capital e sede no Brasil. O que seria uma forma de canalização, pelo Estado, das energias empreendedoras do nosso setor produtivo.
É preciso que os consumidores e o setor produtivo, em especial, atentem para isso.