
Por Ricardo Nuno Costa.
Recentemente um importante canal de geopolítica brasileiro convidou-me para elucidar-lhes um pouco a situação política na Europa e em particular na Alemanha. Desde que estou em Berlim, tenho seguido também com atenção a reação do público brasileiro da internet à decadência da UE e da Alemanha, que já são impossíveis de dissimular. Por aquilo que depreendo, há ainda uma admiração dos brasileiros por um país que se habituaram a conhecer como uma potência econômica mundial e “motor do projeto europeu”, mas também é claro o crescente desprezo pela política externa transatlântica que a República Federal tem seguido nos últimos anos, vista de soslaio, como forçada e pouco genuína.
Um Brasil, hoje com muito mais centralidade e com voz no tabuleiro geopolítico global, vê a subjugação dos interesses nacionais alemães ao consenso de Washington com desencanto. No Sul Global, em particular na América Latina, historicamente fadada à Doutrina Monroe, há uma aversão instintiva ao que representa a influência dos EUA nos seus assuntos e à sabotagem ao desenvolvimento que historicamente infligiu ao subcontinente.
Ocupada e dividida após a grande guerra, sem um lugar no Conselho de Segurança da ONU, limitada militarmente e sem poderio nuclear, a Alemanha (ou melhor, os três quartos do oeste do país), conseguiu ressurgir e transformar-se numa grande potência econômica global, aglutinando a Europa desde o centro, tal como já o previram vários pensadores e economistas desde o séc. XIX, mas inserida na lógica e sistema norte-americanos, inicialmente lançados pelo Plano Marshall. Assim, o papel tutelado de Berlim manteve o país com muito pouca margem de manobra no plano geopolítico para além da Europa. Isto não era crítico nos tempos de bonança, mas com os conflitos na Ucrânia e Médio Oriente e a guerra comercial dos EUA à China, o papel subalterno da Alemanha alerta muitas mentes para a volatilidade que é manter a obediência transatlântica do seu governo e classe política.
O motor do projeto europeu
Aquele que tem sido considerado o “motor econômico da Europa”, foi também o país que mais se beneficiou dos acordos comerciais no seio da UE, em medida ancorado na arquitetura financeira da moeda única, que garantiu à Alemanha um enorme mercado de escoamento, não raras vezes às custas de indústrias concorrentes europeias. Por outro lado, a indústria alemã, sobretudo as intensivas, beneficiou-se ainda de décadas de uma relação frutífera com Moscou, que lhe possibilitou a energia a preços competitivos, enquanto liderava uma retórica antirrussa no seio da EU.
Há vários analistas que vêm na revolta de Maidan de 2014 e consequente corte entre Alemanha e Rússia, os dois maiores países da Europa, uma sofisticada forma de guerra econômica de Washington contra a Europa enquanto sério concorrente comercial. Pouco antes do golpe em Kiev, a ex-secretária de Estado dos EUA e agora importante lobista do setor energético, Condoleeza Rice, afirmava em entrevista, que “queremos que a Alemanha dependa mais da plataforma energética norte-americana, da enorme abundância de petróleo e gás que estamos a encontrar na América do Norte. Queremos ter oleodutos que não passem pela Ucrânia e pela Rússia”. Uma década depois, os resultados estão à vista.
Queda na competitividade
O World Competitiveness Center, índice que classifica a competitividade das economias para além do PIB e produtividade, incluindo também as dimensões política, social e cultural, a infraestrutura, instituições e políticas, entre outros fatores, posiciona hoje a Alemanha no 24° posto, muito aquém do 6° lugar que detinha em 2014, ano das primeiras sanções à Rússia. Uma queda acentuada deu-se após 2022. Desde então, a Alemanha só apresentou dois trimestres de crescimento muito modestos, ambos abaixo de 1%.
As grandes companhias alemãs estão buscando melhores paragens para investir: EUA e China, os dois concorrentes estratégicos do projeto europeu que era suposto a Alemanha liderar. Os grandes industriais perguntam que será da estabilidade dos preços da energia, senão mesmo se o fornecimento de energia poderá ser garantido a médio prazo. Uma grande incerteza a que não se podem de ao luxo de esperar.
Pensões, tecnologia e migrações
Isto coincide com a mudança no paradigma na tecnologia, nas relações laborais e no sistema de pensões. Na próxima década a Alemanha vai mandar para a reforma um milhão de trabalhadores por ano. Este trabalho tem de ser reposto. Por alemães, pouco entusiasmados com as condições salariais, ou por imigrantes, ou por robôs. A confusão está lançada e o discurso nacionalista ganha adeptos cada dia.
O período neoliberal iniciado pela Agenda 2010 de Schröder primeiro, e quatro governos de Merkel depois, corresponde a duas décadas de doce ‘laissez-faire’, mas agora todos dão-se conta de que se esqueceram de fazer os trabalhos de casa: a transição digital é tardia, a infraestrutura está envelhecida e as bases para uma educação de uma geração de alta tecnologia ficou para trás. Isto está passando a fatura atualmente, pois os seus maiores concorrentes econômicos, EUA e especialmente a China, estão preparados para estes desafios.
Economia estagnada
Espera-se que a economia alemã volte a encolher por segundo ano consecutivo e que contraia 0,2% em 2024. Com a economia estagnada desde 2022, todos os indicadores econômicos apontam para uma recessão prolongada e um previsível período de instabilidade política e governamental.
Após a pandemia, o aviso já tinha sido dado: o papel instrumental da Alemanha no sistema econômico ocidental iria mudar, nomeadamente através de uma desindustrialização programada de cariz “ecológico”, nas suas relações com a vizinha Rússia e na guerra econômica de longo prazo dos EUA contra a ascensão da China. A chegada da coligação do “semáforo” corroborou todos os prognósticos mais pessimistas.
Desnuclearizada, desarmada e agora também sem a energia barata da Rússia, a Alemanha vê-se afetada na sua base industrial e no modelo de exportações no qual baseou toda a sua estratégia. O país entra então literalmente em terreno desconhecido. Nunca ninguém conheceu uma Alemanha desindustrializada, e isto lança muitas interrogações dentro e fora do país.
Uma luz no fundo do túnel?
Esta semana, o chanceler Olaf Scholz pronunciou-se a favor de conversações diplomáticas com a Rússia para pôr fim ao conflito na Ucrânia. Na sua declaração governamental no Bundestag, Scholz manifestou a sua abertura a conversações diretas com Putin. “Se nos perguntarem se também vamos falar com o presidente russo, nós dizemos: sim, também é esse o caso”.
No entanto, o líder da oposição Friedrich Merz, que ganharia as eleições de Outubro de 2025 se fossem hoje, chantageou o chanceler a fazer “um ultimato a Putin” com a entrega de mísseis de longo alcance Taurus, capazes de alcançar território russo em profundidade. Scholz parece manter-se firme em relação a este ponto, pois isso representaria a loucura. Não obstante, sinais de pouca racionalidade não faltam em Berlim.
Na entrevista ao canal brasileiro, um dos meus hospedes finalizava o programa, justificando o tema da noite, “porque a Alemanha é ainda o motor da Europa”. Vi-me na necessidade de o corrigir e acrescentar: “A Alemanha era o motor da Europa, porque tinha combustível russo”. A questão fica agora no ar; vai Berlim reconsiderar o seu papel com a Rússia, ou deixar o motor gripar?
No X: @ricardo_nuno