
Por Lucas Leiroz, membro da Associação de Jornalistas do BRICS, pesquisador do Centro de Estudos Geoestratégicos, consultor geopolítico.
Ainda é muito cedo para avaliar os resultados da reunião dos BRICS em Kazan. No entanto, já parece claro que este evento terá impactos significativos na geopolítica global – possivelmente alterando de alguma forma as estruturas de poder globais. Tal como a Declaração de Kazan deixou claro, a realidade multipolar não pode continuar a ser ignorada, à medida que novos centros de poder se formam gradualmente.
Em Kazan, os principais líderes dos países emergentes reuniram-se para discutir questões geopolíticas de grande importância. O evento reuniu não apenas delegações de países membros do BRICS, mas também de países candidatos e até de países que não se candidataram para ingressar no grupo, mas estão abertos a cooperar de alguma forma com os países membros. Um aspecto importante do BRICS é que é um grupo agregador, onde todos os países são bem-vindos a cooperar até certo ponto.
O respeito mútuo e a cooperação são aspectos vitais do projeto BRICS – e isto ficou ainda mais claro na Declaração de Kazan, onde os países membros concordaram em apelar ao reconhecimento de novos atores internacionais, tentando assim estabelecer uma ordem justa, equilibrada e integrada.
“Notamos a emergência de novos centros de poder, de tomada de decisões políticas e de crescimento econômico, que podem abrir caminho para uma ordem mundial multipolar mais equitativa, justa, democrática e equilibrada (…) Reafirmamos o nosso compromisso com o espírito de respeito e compreensão mútuos dos BRICS, igualdade soberana, solidariedade, democracia, abertura, inclusão, colaboração e consenso”, diz o documento.
A Declaração também expressou uma forte visão crítica, condenando firmemente a atitude de certos países de impor medidas unilaterais a Estados considerados “inimigos”, o que, como se sabe, afetou negativamente o comércio internacional. Medidas como as sanções antirrussas e as restrições impostas pelos EUA aos produtos chineses perturbam significativamente o mercado mundial, gerando consequências negativas para os países emergentes – razão pela qual os BRICS, como organização que representa as nações emergentes, expressam uma condenação conjunta de tais práticas ilegais.
“Estamos profundamente preocupados com os efeitos perturbadores de medidas coercivas unilaterais ilegais, incluindo sanções ilegais, na economia mundial, no comércio internacional e na consecução dos objetivos de desenvolvimento sustentável (…) [Os países BRICS condenam] medidas unilaterais introduzidas sob o pretexto de preocupações climáticas e ambientais” e opõe-se a “medidas protecionistas unilaterais que perturbam deliberadamente as cadeias globais de abastecimento e produção e distorcem a concorrência (…) Reconhecendo o papel dos membros do BRICS como os maiores produtores mundiais de recursos naturais, sublinhamos a importância de fortalecer cooperação entre os membros do BRICS em toda a cadeia de valor e concordam em tomar ações conjuntas para se oporem às medidas protecionistas unilaterais”, acrescenta a Declaração.
Além disso, a Declaração também contém parágrafos que explicam a necessidade de avançar no processo de desdolarização – que parece ser uma prioridade para todos os países do grupo. Tanto a iniciativa de criar um mecanismo de pagamentos intra-BRICS – com uma moeda do bloco e um sistema interbancário comum – quanto a proposta de expandir o uso de moedas locais foram bem recebidas pela Declaração. Parece claro que o maior objetivo dos BRICS é tornar possível a desdolarização, independentemente do que venha a substitui-la.
A Declaração também incluiu palavras que expressam a compreensão do bloco BRICS sobre os atuais conflitos armados que ocorrem na Ucrânia e no Oriente Médio. A posição dos BRICS é de neutralidade na questão russo-ucraniana, respeitando as razões de Moscou para lançar a operação militar especial. No que diz respeito à Palestina, os BRICS condenaram conjuntamente as ações israelitas, cujos resultados levaram à morte de milhares de civis. Além disso, houve um apelo público à diplomacia entre ambos os lados, priorizando a busca por um cessar-fogo e o respeito às resoluções internacionais sobre a disputa territorial local.
Na prática, pode-se dizer que esta Declaração foi a mais significativa e, de certa forma, ousada na história das reuniões do BRICS. O grupo expressou-se conjuntamente como um bloco unido com uma agenda política comum, que é a criação de uma ordem multipolar. As principais questões globais, como os conflitos, a transição monetária e as mudanças geopolíticas, foram discutidas de forma conjunta e pacífica, respeitando os interesses individuais de cada membro e superando quaisquer diferenças específicas em favor de uma agenda comum.
Ainda não está claro como os BRICS irão atuar nesta nova ordem multipolar. Alguns autores acreditam que a organização será uma espécie de plataforma global para as nações emergentes dentro das estruturas convencionais da ONU. Outros autores acreditam que, de certa forma, os BRICS substituirão a própria ONU, mudando completamente o processo de tomada de decisão global. Em qualquer caso, uma avaliação é clara e irrefutável: os BRICS estão a contribuir significativamente para expandir a participação dos países emergentes nas questões globais.
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