Uma visão de um marxista sobre o projeto de Hilton
Por Jairo Junior, Presidente da Associação Brasil Angola, foi Secretario de Esportes em Osasco-SP, Indústria e Comércio em Paulínia -SP e secretário de Transporte em Americana- SP
Inundou as redes sociais, nos últimos dias, uma onda de lacração tendo como mote a escala 6×1. Tratada pelos “lacradores” de sempre como uma proposta revolucionária da “Beyoncé” do Congresso Nacional, a deputada paulistana do PSOL, Erika Hilton.
Vários “quadros” da “esquerda” nacional ocorreram , sem nenhum argumento sério e plausível, ao meu ver, em apoio. O vice-presidente Alckmin, defendeu, aparentemente, sem ler, a proposta, dizendo ser uma “tendência mundial”.
Mas o que diz a proposta apresentada pela parlamentar e o quê, talvez, seja melhor perguntar: por que causou tanto rebuliço nas redes?
Eis a proposta, que consiste no acréscimo do inciso XXIII no Artigo 7o. da Constituição:
“Art 7º……….XXIII- Duração de trabalho normal não superior a oito horas diárias e trinta e seis horas semanais, com jornada de trabalho de quatro dias por semana facultada a composição de horários e a redução de jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”
Segundo a PEC, tal medida entre em vigor em “360 dias”, um ano, portanto!
Na justificativa, ela recorre a um movimento, que não é sindical, e sim chamado “Vida além do Trabalho” organizado pelo vereador eleito no RJ, Rick Azevedo. A “liderança” teria apresentado uma petição com cerca, segundo a justificativa, de 800 mil assinaturas de brasileiros e brasileiras que cobram do Congresso Nacional, tal redução.
Na PEC, Erika arrola, ao longo do texto, “argumentos” da economista da UNICAMP, Marilane Teixeira que diz que tal redução acarretaria “ganhos ao país seja na economia, mercado de consumo, redução drástica do desemprego e elevação da qualidade de vida dos trabalhadores que teriam mais tempo para se dedicar à família, ao lazer e ao descanso”.
Causou-me espécie, entre outras coisas, a ausência de referências, uma única linha que seja, ao nosso histórico, forte e combativo movimento sindical que aliás, se formos utilizar o jargão ” lugar de fala”, deveria ser o primeiro a se pronunciar sobre o tema. Talvez não porque, muito provavelmente, deve ser tratado pela proponente, nobre parlamentar, como uma “horda” de pelegos e estuário dos ideias da extrema-direita no país.
Na verdade, essa “proposta” começou nas redes sociais, particularmente, quase, exclusivamente, no Rio de Janeiro, a partir da iniciativa do então pré-candidato a vereador (hoje eleito) pelo PSOL carioca, Ricardo Azevedo. Rick (como gosta de ser chamado) era usuário contumaz do Tiktok, ex-balconista de farmácia, revoltou-se contra a escala de trabalho chamada, por lá, de 6×1, que é regra atualmente no trabalho dos comerciários do Rio, envolvendo funcionários de bares, restaurantes, lojas, farmácias, supermercados etc.
Um vídeo com críticas à escala de trabalho, feito por ele, viralizou e foi determinante na sua eleição como o mais votado de seu partido. Animado, criou o movimento “vida além do trabalho” e coletou assinaturas para chamar, segundo o próprio, a atenção de Deputados. Hilton, do mesmo partido em São Paulo, resolveu encampar uma “proposta” na Câmara.
Ainda, talvez, seja importante destacar que há no congresso algumas propostas tramitando ou que foram já apresentadas com conteúdo similar.
O então Deputado Federal pelo Ceará, Inácio Arruda, apresentou há trinta anos a PEC 231/95 que propunha reduzir de 44 para 40 a jornada de trabalho. Proposta que apresentava como justificativa um alentado estudo que continha dados objetivos e concretos que lhe conferiram robustez. Mas mesmo assim, sequer foi posta em votação. E vejam que a conjuntura, naquele momento, era muito mais favorável!
Hoje há pelo menos três propostas, com o conteúdo similar ao descrito acima, de autoria dos senadores Weverton de Brito, Paulo Paim e Soraya Thronicke em plena tramitação no Senado. Na Câmara há uma inclusive aprovada na CCJ.
A situação, a correlação de forças, a forma com a qual a proposta foi apresentada e ausência de cuidado em construir argumentos sólidos em sua defesa chama a atenção. Mas o fato de propor pular de 44 para, na prática, 36 horas, no prazo de um ano, parece ter sido feita mais com o intuito de conquistar likes/votos do que viabilizar uma condição para atender uma demanda real e concreta do movimento trabalhista brasileiro (desprezado pela autora).
Além disso, a proposta diz que a semana de trabalho seria de quatro dias, sem explicar como trabalhar 36 horas tendo como jornada semanal quatro dias!
A redução da jornada de trabalho é uma reivindicação histórica dos trabalhadores em todo o mundo. Uma questão importantíssima que tem haver com a divisão internacional do trabalho, a questão de produtividade e impacto negativo na produção de mais valia e portanto redução de lucro do capitalista.
E, por isso mesmo, é difícil sua conquista. Em especial, num momento em que a “opinião pública” está anestesiada por discursos e bandeiras como privatização, redução do Estado e empreendedorismo.
Mas as dificuldades não reduzem sua justeza. Entendo ser necessária e mais cedo ou mais tarde no Brasil, deverá ser aprovada. Contudo nunca sem luta, muita luta! Nunca sem um movimento político amplo e consequente cujo protagonismo seja da chamada “classe trabalhadora”.
Por isso que a forma, ao meu ver, prejudica e muito o conteúdo.
Em uma análise histórica da evolução e das mudanças ocorridas nos sentidos atribuídos ao tempo e ao tempo de trabalho, alguns autores e estudiosos, enfatizam como o imperativo tecnológico influenciou os sucessivos paradigmas voltados à reorganização do trabalho.
A invenção do relógio mecânico possibilitou que o controle disciplinar do trabalho fosse exercido por meio do tempo linear do relógio. Neste contexto, a jornada de trabalho foi historicamente concebida para buscar a institucionalização de medidas temporais lineares e padronizadas, cuja finalidade imediata é a racionalização do tempo de trabalho.
Via de regra, o tempo à disposição o tempo à disposição do empregador extrapola o tempo de trabalho necessário, ou seja, aquele em que os trabalhadores produzem o equivalente ao seu próprio valor. Historicamente, é da apropriação do tempo de trabalho excedente que o modo de produção capitalista se reproduz.
Segundo o sociólogo Darci Dal Rosso o tempo de trabalho é composto por três dimensões:
a)duração: tempo efetivo de trabalho em número de horas, dias semanas, meses e anos;
b)distribuição: relacionada aos momentos em que o trabalho é executado em determinado período e seu grau de flexibilidade;
c)intensidade: esforço físico, intelectual ou emocional para a execução do trabalho.
Sob essa perspectiva a intensidade emerge como dimensão mais complexa de análise, pois diferentemente das demais, não há legislação ou uma medida única que determine o nível de esforço que os trabalhadores devem realizar durante o seu tempo de trabalho.
A dualidade tempo de trabalho versus tempo de não trabalho se expressa como um princípio normativo da sociedade capitalista e, mais do que isso, como um elemento de racionalização da vida.
Conforme o historiador Edgar de Decca (1982), tal racionalização torna-se onipresente em pregações que relacionam tempo e dinheiro, cristalizando normas sociais, valores e a noção do tempo como moeda no mercado de trabalho.
Ainda que notadamente escassos, estudos críticos têm demonstrado como o tempo de trabalho, inclusive a jornada reduzida, instrumentaliza mecanismos de poder e controle nas organizações. Kelliher e Anderson (2010), por exemplo, em pesquisa com trabalhadores do setor privado britânico, identificaram três fatores que podem levar à intensificação do trabalho em um contexto de jornada reduzida. O primeiro ocorre quando não há redução da demanda de trabalho juntamente à redução da jornada.
No segundo, o fato de trabalhar menos horas diárias/semanais pode levar os trabalhadores a se sentirem menos cansados e estressados e, indiretamente, reverter essa energia e disposição adicional em prol do aumento da intensidade do trabalho. O último aspecto diz respeito à reciprocidade dos trabalhadores, que podem aumentar seus esforços laborais como forma de agradecimento ao empregador pela possibilidade de atuação em jornada reduzida.
De modo semelhante, pesquisadores analisaram como o discurso e as práticas de flexibilização podem ser utilizados como forma de controle sobre trabalhadores bancários, levando-os à intensificação do trabalho e à submissão às pressões organizacionais.
Esta minha “prosopopeia flácida para acalentar bovino” serve, neste contexto, apenas para ilustrar como há argumentos e aspectos importantes, contrários ao reducionismo simplificador que a proposta da deputada, divulgada como panaceia, apresenta.
Mas para além do conteúdo, da oportunidade política, da correlação de forças, há ainda , o oportunismo de, ao não se dispor sequer dialogar com parlamentares mais experientes e até capazes, a fim de ajustar, como é de praxe na “vida” do parlamento, adensando propostas e ajustando argumentos, para quem sabe, produzir ao menos um debate sério e responsável sobre demanda das mais importantes e cara a luta secular dos trabalhadores brasileiros.
Mas não, o objetivo não é esse! “Lacrar” nas redes, carimbar os divergentes como “fascistas” e “extrema-direita” faz parte deste ambiente criado por essa falsa esquerda que só pensa em “like”, mesmo que seja de origem duvidosa. E com um “radicalismo” que faria Eduard Bernstein corar, vociferam: “o movimento é tudo, objetivo final é nada”.