
Movimento de Solidariedade Íbero-americana.
A avassaladora vitória de Donald Trump nas eleições de 5 de novembro é mais uma contundente evidência do esgotamento da agenda que as elites globalistas ocidentais vinham se empenhando em consolidar nas últimas décadas, como se ela fosse a transmutação política de uma lei universal.
A rigor, o desfecho eleitoral surpreendeu apenas os que se deixaram levar por pesquisas de opinião viciadas e análises de comentaristas mais motivados por suas torcidas e percepções ideológicas do que pela observação objetiva dos fatos do mundo real.
Por isso, a propaganda politicamente correta da mulher negra e filha de imigrantes, a própria encarnação do “sonho americano” (imagem há muito desaparecida), não deixou que se percebesse a rejeição maciça da população dos EUA, principalmente a do interior, às agendas urbanoides dos estados costeiros do Leste e da Califórnia, cujos temas predominantes são o identitarismo/“wokismo”, a exacerbada questão ambiental centrada numa inexistente crise climática e a transição energética acelerada e contrária aos combustíveis fósseis. Daí o contraste de entre as pesquisas e expectativas que apontavam a vitória de Kamala Harris ou um “empate técnico” e os resultados das urnas.
Em essência, o globalismo consiste na transferência das atribuições e responsabilidades dos Estados nacionais soberanos na condução das políticas e assuntos intrínsecos às sociedades de cada país, para tecnocratas não eleitos vinculados a redes internacionais e a uma agenda supranacional articulada e promovida por agências governamentais e organizações privadas (think-tanks, ONGs e outras) do eixo euroatlântico, e agências multilaterais integrantes do sistema das Nações Unidas, formando estruturas de “governança global” (ou, se se preferir, governo mundial).
O seu pressuposto fundamental é o de que a complexidade e a interdependência crescentes dos problemas mundiais transcendem as fronteiras e impõem que os Estados nacionais “cedam” parcelas de suas soberanias para permitir o enfrentamento efetivo deles.
O processo assumiu um caráter de avalanche a partir da década de 1990, com a implosão da União Soviética e o advento simultâneo da globalização financeira e da “Nova Ordem Mundial” decretada pelo presidente dos EUA, George H.W. Bush (1989-1993), cujos pilares eram o centro financeiro de Wall Street e o poderio militar estadunidense. Assim, o globalismo se confunde com o impulso para a consolidação de um marco de poder mundial unipolar, promovido pelas elites “excepcionalistas” estadunidenses.
Assim, não deixa de ser irônico que Francis Fukuyama, um dos promotores do globalismo com a sua esdrúxula tese do “fim da História”, tenha sido forçado a admitir a realidade, em um artigo publicado no Financial Times londrino e reproduzido pela Folha de S. Paulo de 11 de novembro. Segundo ele, o significado da eleição “representa uma rejeição decisiva dos eleitores americanos ao liberalismo e à maneira particular como a compreensão de uma ‘sociedade livre’ evoluiu desde os anos 1980”.
Professoral, Fukuyama define o liberalismo clássico como “uma doutrina construída em torno do respeito pela dignidade dos indivíduos por meio de um Estado de Direito que protege seus direitos e de controles constitucionais sobre a capacidade do Estado de interferir nesses direitos”.
E admite:
“Mas, ao longo do último meio século, esse impulso básico sofreu duas grandes distorções. A primeira foi a ascensão do neoliberalismo, uma doutrina econômica que canonizou os mercados e reduziu a capacidade dos governos de proteger aqueles prejudicados por mudanças econômicas. O mundo ficou muito mais rico ao todo, enquanto a classe trabalhadora perdeu empregos e oportunidades. O poder se deslocou dos lugares onde nasceu a Revolução Industrial para a Ásia e outras partes do mundo em desenvolvimento.
“A segunda distorção foi a ascensão do identitarismo ou do que se poderia chamar de liberalismo ‘woke’ (forma como é chamado o discurso de pautas identitárias nos EUA), em que a preocupação progressista com a classe trabalhadora foi substituída por proteções direcionadas para um conjunto mais restrito de grupos marginalizados: minorias raciais, imigrantes, minorias sexuais e afins. O poder do Estado foi cada vez mais usado não a serviço da justiça imparcial, mas sim para promover resultados sociais específicos para esses grupos.”
O resultado, e não apenas nos EUA, concede Fukuyama, gerou uma insatisfação generalizada “com um sistema de livre comércio que eliminou seus meios de subsistência, ao mesmo tempo em que criou uma nova classe de super-ricos, e também com partidos progressistas que aparentemente se importavam mais com estrangeiros e o meio ambiente do que com sua própria condição econômica”.
Outra irônica evidência da retração globalista é a erosão da capacidade industrial dos EUA, manifestada na incapacidade do complexo industrial-militar do país de acompanhar a superioridade quantitativa e qualitativa demonstrada pela Rússia na guerra na Ucrânia, além das dificuldades de acompanhar os rápidos avanços bélicos da China, ambas, anatematizadas pelas elites dirigentes de Washington.
Por isso, a contrapartida belicista do globalismo, a “Nova Ordem Mundial”, que alguns chamam a “Pax Americana” (embora esteja bem mais para “bellum” do que “pax”), também encontra-se diante de uma perspectiva de xeque-mate com o retorno de Trump à Casa Branca.
Esta é a percepção de Ivo Daalder, ex-embaixador estadunidense na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e presidente-executivo do Chicago Council on Global Affairs: “Trump não está interessado em sustentar a Pax Americana como estiveram os seus 14 antecessores… A Pax Americana terminará oficialmente em 20 de janeiro de 2025, quando os EUA empossarão Donald J. Trump como o seu 47º presidente. O país e o mundo serão muito diferentes por causa disso (Politico, 08/11/2024).”


O próprio Trump, em seu discurso de vitória, na madrugada de 6 de novembro, prometeu: “Eu não vou começar guerras, eu vou terminar guerras.”
Por óbvio, será preciso aguardar a sua posse para ver como ele enfrentará os enormes desafios que terá adiante, começando pela manifesta hostilidade do Establishment. Entretanto, as ondas de choque deflagradas pelo seu retorno triunfal denotam que, além de sintoma do esvaziamento globalista, a sua presença no Salão Oval poderá ser um efetivo agente catalisador desse processo histórico.