Diante do boicote do Carrefour à carne proveniente dos países do Mercosul, a polêmica sobre o Acordo Comercial Mercosul – União Europeia volta à agenda de discussão.
O acordo foi firmado em 2019, na reunião do G-20, ocorrida no Japão, com o início das suas negociações vinte anos antes. Passados cinco anos de sua assinatura, ainda não entrou em vigor, pois não foi ratificado nem pelo Parlamento Europeu nem dos países do Mercosul. Se pudéssemos enviar uma mensagem ao Congresso Nacional, seria para rejeitá-lo.
Primeiramente, o setor rural é um ponto sensível para os europeus antes mesmo da formação da União Europeia, pelo Tratado de Maastricht, de 1993. Na década de 1950, quando começou a ser negociada a formação do Mercado Comum, os países-membros fizeram a escolha por abrir os mercados nacionais uns para os outros, mas manter políticas agrícolas de proteção a seus mercados por meio de subsídios. Por meio deles, os países europeus conseguiram manter sua produção e população no campo, tornando-os artificialmente competitivos no mercado mundial, garantindo para eles até mesmo mercados de exportação.
Mas à medida em que eles passam a se integrar às economias do Mercosul, essa vantagem dos europeus diante desses diminui. O que faz aumentar o temor de perda de mercados, na Europa, para os produtos exportados da América do Sul, sobretudo do Brasil. Neste ponto, a França, maior beneficiária da Política Agrícola Comum da UE, é historicamente mais rígida em não abrir mão dessa posição.
A partir daí entende-se a posição do Carrefour diante da iminência de avanço nas negociações, com a proximidade da reunião do G-20, ocorrida em novembro, no Rio de Janeiro. Mesmo sendo uma rede de supermercado transnacional, com fatia considerável do mercado brasileiro pelas marcas Carrefour e Atacadão, mantém uma relação de proximidade histórica com o setor agroexportador francês, transformado em “campeão nacional” com apoio desse setor e de políticas de governo. Apesar da crescente adesão do boicote reverso, pelos produtores nacionais e lideranças políticas ligadas ao agronegócio.
Uma outra razão para rejeitar integralmente o acordo é o risco político na Europa. Desde fevereiro de 2022, os países do bloco europeu estão, quase todos, às turras com a Rússia, de quem dependiam para o fornecimento de energia barata, via gasodutos, para suas indústrias. Se a Alemanha não apresentava grandes óbices para a vigência do Acordo, por outro lado sua indústria está perdendo competitividade, contribuindo para a recessão na principal economia da UE. Com isso, há a previsão de mudanças nos governos não só da Alemanha, mas de diversos outros países, nos próximos anos, que podem ser ainda mais hostis aos termos do Acordo finalizado em 2019.
Mesmo na França, Emmanuel Macron, em seu segundo mandato, enfrenta uma Assembleia Nacional dominada pela oposição, após a derrota sofrida neste ano, com o crescimento do partido RN, de Marine Le Pen, nacionalista e cauteloso diante dos termos impostos pelo bloco.
Outra questão deletéria para o Brasil, incluída nos termos do Acordo, foram as cláusulas ambientais, para implementar medidas do Acordo de Paris, de 2015. Diante da competição do agro europeu com o brasileiro, naqueles mercados, caso o Acordo entre em vigência, cresceriam as pressões contra os produtores nacionais, sobretudo do Centro-Oeste e da Amazônia, não importando que a legislação ambiental brasileira seja muito mais rígida que a dos europeus. Os mecanismos de ingerência na produção brasileira só aumentariam, assim como a atuação de ONGs com financiamento de governos europeus ou da própria Comissão Europeia de Bruxelas. Seria uma pressão ainda maior do que o Brasil sofre hoje com a “Gestapo ambiental” formada a partir do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas do governo Lula.
Neste ponto chama a atenção de que se na Europa há bastante pressão política contra o Acordo, o mesmo não se pode dizer do Brasil. Talvez só agora o agro brasileiro esteja acordando para os pontos negativos desse acordo, mas a classe política parece contente com o conteúdo do mesmo. Tanto que foi Celso Amorim, nos oito anos que esteve no posto de ministro das Relações Exteriores, nos dois primeiros mandatos de Lula, quem assumiu o protagonismo, pelo Mercosul, para o avanço das negociações. Michel Temer retomou o projeto, quando assumiu a presidência, em 2016, e avançou nos pontos para que, no primeiro ano de governo de Bolsonaro, o tresloucado ministro Ernesto Araújo (conhecido por denunciar comunistas e “globalistas” em todos os lugares) pudesse assinar como representante brasileiro.
Poucas vozes colocaram-se contra tendo em vista os impactos que a ratificação do Acordo teria na economia nacional, desde o agro e o setor industrial até a política de compras de governo e licitações. O temor dos europeus hoje se justifica pelo demonstrado entusiasmo com o qual Lula está encarando o acordo com os europeus, com os quais prefere manter maiores vínculos diplomático.
Por fim, o melhor que se poderia fazer é abandonar este acordo e iniciar a negociação de termos de um outro que facilitasse o comércio em determinados setores de modo a melhor beneficiar o Brasil, sem ingerência em nossa economia. Se, de um lado, os europeus devem ter respeitado o seu direito a manter sua política agrícola, que lhes garante segurança alimentar, ao Brasil deveria ser dado o direito de manter uma política industrial com aumento de conteúdo local e impulsionada por compras governamentais.