
“O Incrível Exército de Brancaleone” (“L´Armata Brancaleone“) é um clássico do cinema italiano, lançado em 1966, que conta a história de um cavaleiro medieval, Brancaleone da Nórcia, que recruta um bando para tomar posse de um feudo. Brancaleone, interpretado pelo grande ator Vitório Gassman, é tão atrapalhado quanto seus seguidores e só se livra dos desafios, em suas aventuras, pela sorte ou pela incompetência dos adversários. Um clássico da comédia italiana, quando os filmes deste país rivalizavam com as produções hollywoodianas nos cinemas brasileiros.
Tal como o filme é uma paródia dos romances medievais, com alusões às desventuras de Dom Quixote e seu fiel escudeiro, Sancho Pança, o suposto golpe, alvo de denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR), é o mesmo em relação a um verdadeiro golpe de Estado. Voltemos um pouco no tempo.
Jair Bolsonaro assumiu a presidência da República em 01 de janeiro de 2019 com a agenda centrada em fazer avançar as políticas da “Ponte para o Futuro”, lançadas por Michel Temer a alguns meses antes da destituição de Dilma Rousseff da presidência. Com seis meses de presidência fez avançar a Reforma da Previdência e assinatura do Acordo Comercial Mercosul – União Europeia, duas pautas legadas por seu antecessor. Ainda naquele ano, manifestou interesse em ingressar na OCDE. Tudo conduzido por seu superministro Paulo Guedes, o economista e banqueiro que garantia à grande mídia e aos grandes investidores que o governo do ex-militar seguiria o rumo do ajuste fiscal e da retirada do Estado da economia, por meio de privatizações – assim aconteceu com a BR Distribuidora, refinarias da Petrobras e parte das ações da Eletrobras leiloadas na B3 (Bolsa de São Paulo).
Ou seja, o caráter fundamental do governo Bolsonaro era a de condução da agenda de reformas neoliberais, de forma a “abrir o país para o investimento externo” – nas palavras dos seus defensores – de forma que a política de privatizações funcionou como uma isca para isso. No plano internacional, foi bem recebido pelos governos europeus, apesar de algumas rusgas com o presidente francês Emanuel Macron, e procurou uma relação especial com Trump.
Eis que veio a pandemia e a grande mídia começou a apontar o lado trapalhão de Bolsonaro, com a profusão de declarações estapafúrdias e dos ataques retóricos às medidas de isolamento, que, apesar disso, foram impostas por estados e municípios, com base em uma lei federal de fevereiro de 2020, sancionada pelo próprio presidente – o que poucos costumam lembrar. Veio também a demissão do ministro Luiz Mandetta e o querido da imprensa e da direita Sérgio Moro, assim como uma sucessão de ministros da Saúde. Mas o ponto de virada foi início do inquérito das “fake news”, iniciado pelo ministro Alexandre de Moraes, que veio por abalar a relação de Jair Bolsonaro e seu entorno com a imprensa e o Judiciário.
Esse episódio veio a salientar a contradição fundamental dentro do governo Bolsonaro: de um lado, a equipe econômica de Paulo Guedes, conduzia a agenda política, em tabela com o Congresso Nacional, para a aprovação das “reformas”, e de outro, o entorno bolsonarista, uma parte deles tornados réus na denúncia apresentada pela PGR, afeita a atuação incessante nas mídias sociais, de forma dinâmica, que não se confundia com o grupo condutor, pois nasceu do caldo de cultura que se formou desde 2013 até o impeachment de Dilma, com a pauta “contra tudo o que está aí” e o “comunismo” (representado pelo PT e por Lula), contra o “estamento burocrático”, que estaria no controle do Estado brasileiro, pelo menos desde os anos 1980, dentre outros temas correlatos, com base em discursos de figuras obscuras da internet. Nesta se agruparam figuras como militares mais fiéis ao presidente, como os generais Augusto Heleno, Walter Braga Netto e o ajudante de ordem Mauro Cid.
Dessa forma, o que andou no governo foi a agenda das “reformas” econômicas, na linha do “Ponte para o Futuro”: previdência (mais rígida do que a proposta por Temer em 2017), privatizações, Marco do Saneamento (que estimulou a privatização das companhias estaduais Sabesp e da Cedae, p. exemplo) e boa parte da Reforma Tributária, que veio a ser retomada no Governo Lula. Tudo dentro da linha fiscalista, de redução dos gastos do governo, e da atração de investimentos externos, conforme a linha preconizada pelas instituições internacionais e ortodoxia econômica. Trocando em miúdos: puro suco de Neoliberalismo.
Mas o andamento desta agenda, conduzida por tecnocratas instalados na área econômica e negociada de mil formas com o Congresso, por sua vez, depende de segurança jurídica e de minimização do que se chama “risco político”. Ou seja, que os ritos políticos de eleições periódicas sejam respeitados, que a transição entre os governos aconteça, tal como as “regras do jogo”. Tudo “dentro das quatro linhas da Constituição”, conforme Bolsonaro gostava de dizer.
Em meados de 2021, o entorno bolsonarista resolveu assumir maior protagonismo: insuflado por estes, o presidente convocou uma grande manifestação em Brasília, no dia 07 de setembro, em que defendia que não mais reconheceria decisões “ilegítimas” do ministro Alexandre Moraes. Com base em mensagens divulgadas pela máquina de propaganda, muitos fiéis seguidores acreditavam que estariam sendo decretadas medidas extraordinárias a partir da caneta do presidente, quando, na verdade, mais uma vez com a intervenção de Temer, Bolsonaro teve que recuar da postura de confronto com o STF e escreveu um pedido de desculpas à Corte. Tarde demais que o entorno deve ter percebido que a proposta de reforma do sistema eleitoral, com a adoção do voto impresso, não foi devidamente trabalhada para ser aprovada de forma a valer nas eleições de 2022.
Durante 2022, Bolsonaro seguiu às turras com o Judiciário e a imprensa, incluindo aí a famigerada reunião com os embaixadores, que lhe custou a inelegibilidade no ano seguinte, a partir de denúncia de abuso eleitoral apresentada pelo PDT. O desgaste durante a pandemia e a estagnação econômica, apesar do boom do Auxílio Emergencial, pesaram nas eleições, com a vitória de Lula logo reconhecida pelas lideranças do Senado, da Câmara e pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Mas, nos meses finais de seu governo, ainda mais com a oficialização dos resultados eleitorais, enquanto a equipe econômica trabalhava para a transição, o entorno assumia um comportamento mais “brancaleônico”, fomentando manifestações em estradas e na porta dos quartéis, como se um levante popular em que as Forças Armadas assumiriam o comando de um movimento para manter Bolsonaro na presidência, nem que fosse com a anulação das eleições. Para isso faziam uma interpretação esquizofrênica do Artigo 142 da Constituição, em que, “convocado pela sociedade”, as Forças Armadas suspenderiam o funcionamento das instituições para impor a ordem.
De fato, havia uma retórica golpista, consubstanciada em esboço de planejamento de ações violentas, mas em que forças políticas se amparavam? Os poderes da República ignoraram Bolsonaro e seguiam com o rito. Não se viu na grande mídia e nos grandes interesses econômicos que elas representam nenhum apoio, tampouco. E, além disso, o mais importante: as autoridades dos EUA não só não respaldaram a retórica bolsonarista como enviaram alguns emissários, incluindo a alta diplomata Victoria Nuland para respaldar publicamente a lisura do processo eleitoral brasileiro. Se estivesse sendo tramado um golpe, este não teria nenhuma chance de vingar, dadas as condições dadas acima.
No fim, nos meses de novembro e dezembro de 2022, o que ficou para posteridade foram reuniões que pareciam um quadro de filme de comédia, uma atualização do Exército de Brancaleone nos tempos modernos, talvez com tons de humor negro, que serviram de elementos materiais para o STF e a PGR, para a construção da ação penal que está sendo apresentada. Reuniões que tiveram por efeito prático jogar a base bolsonarista contra o comando das Forças Armadas, os chamados “melancias” (verdes por fora, vermelhos por dentro) e talvez fomentar a baderna do 08 de janeiro de 2023, que só serviu para jogar os bolsonaristas mais moderados ao lado da legalidade do governo Lula que recém assumia a presidência pela terceira vez.
Enquanto isso, nesse mesmo período, a transição de governo seguia seu andamento, sem ser contestada, a não ser por uma parte do Congresso, composta pelo “núcleo duro” do bolsonarismo. Bolsonaro, antes de partir para Orlando, nos EUA, em 30/12/2022, só tinha para si o seu “cercadinho”, para o qual se conformou a chorar as mágoas durante seus quatro anos na presidência.
Pode ser que a delação de Mauro Cid e as “minutas do golpe” apreendidas pela Polícia Federal indiquem elementos materiais para o planejamento de ações contra autoridades ou mesmo ordenando a execução de Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes. Mas quem teria tamanha devoção ao ex-presidente e coragem para por o plano em prática? Que forças políticas reunidas aguentariam a pressão de prováveis sanções impostas a eles pelos Estados Unidos e pela União Europeia? Tal iniciativa ousada não teria amparo das elites brasileiras – até mesmo o “Exército de Brancaleone” que se juntou a Bolsonaro sabia disso.
O desfecho da ação deve ser que Bolsonaro pagará por o golpe que talvez tenha existido em sua cabeça, mas que ele não tinha condições políticas de dar. Contudo, os ministros do STF não devem se mostrar condescendentes em relação a ele.
Além disso, a base bolsonarista parece ainda estar deslumbrada com Donald Trump, como se o presidente dos EUA pudesse influir de alguma forma para a condenação e prisão dos réus – ou pelo menos do suposto de líder – não se concretizar. Tal atitude infantil pelo governo Modi já foi notada em artigo do analista geopolítico indiano MK Bhadrakumar ao comentar sobre a visita do primeiro ministro há uma semana e parece se replicar com mais intensidade entre os entusiastas do boné vermelho de Trump. Mas se o presidente dos EUA está comprando briga com agências de governo dos EUA, como a USAID e o NED, que fomentam ativismo em países estrangeiros para obedecer estratégias de Washington, por que Trump romperia seu isolacionismo e atuaria em favor de Bolsonaro? Nada garante que, mantido seu estilo de negociador, Trump não possa se acertar com o governo Lula, da mesma forma que ele enviou um representante a Caracas para negociar com Nicolás Maduro – ato que oficializou o reconhecimento da legitimidade do mandato do presidente venezuelano.