
Ronaldo Bicalho é engenheiro químico e pesquisador do Instituo de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também membro do Instituto Ilumina, organização dedicada ao estudo do setor elétrico. No canal do Instituto de Economia da UFRJ, comanda o programa Curto Circuito, sobre o setor elétrico nacional.
Sua avaliação sobre o setor elétrico é crítica: o modelo enfrentará sérias problemas, depois de décadas de desmonte de um sistema integrado, com base na forte presença estatal, que foi sendo substituído, nos governos FHC e – principalmente – Lula, ao qual se somam agora as pressões externas vindas dos compromissos ambientais assumidos pelo atual governo. A pressão pela transição energética, que inclui maior participação das fontes geradoras solar, eólica e hidrogênio, elevará os custos, que serão repassados para os consumidores.
Antes de tudo, lembra que a construção do setor elétrico nacional, com base em grandes obras de engenharia, foi um dos grandes feitos brasileiros, entregando um sistema interligado da Amazônia ao Rio Grande do Sul, com forte participação da produção de “energia limpa” na forma de hidrelétricas.
O setor elétrico brasileiro, tal como se desenvolveu durante as décadas de 1930 a 1970 só foi possível por causa de uma burocracia estatal capacitada e com projeto de país. “Foram responsáveis por um grande feito, essa burocracia com lugar nos ministérios, comissões de governo e nas empresas estatais. Dentro dessa burocracia, havia divergências ideológicas, uns mais à esquerda, outros mais à direita, mas todos com uma visão de país que não existe mais, quando hoje predomina uma visão lavajatista, de culpabilização e até criminalização da ação do Estado”, afirma o pesquisador.
Nesse sentido, ele destaca a importância da construção de Itaipu como o maior feito da engenharia e do setor elétrico nacional, que envolveu grandes dificuldades técnicas e até políticas, ao ser negociada diretamente com o governo paraguaio. As dificuldades técnicas fizeram com que as linhas de transmissão – o Linhão de Itaipu – tivesse que ser via corrente contínua.
O setor elétrico brasileiro, comandado pela Eletrobras, a grande holding do setor que conglomerava várias geradoras locais, conseguiu proporcionar oferta de energia elétrica mesmo em um cenário de grande crescimento econômico e aumento ainda proporcionalmente maior em termos de consumo, com o maior uso intensivo de energia devido à consolidação do processo de industrialização. Mesmo com o processo inflacionário e os cortes de gastos do governo a partir do início dos anos 1980 e com subsídios inseridos no custo de energia, que acabaram por gerar perdas financeiras para as empresas geradoras, comprometendo a capacidade de investimento delas.
Apesar dos problemas enfrentados na década de 1980, Bicalho aponta a década de 1990 como ponto de inflexão no sistema elétrico. Naquela época, durante o governo FHC (1995-2002), houve a primeira tentativa de se desmontar o setor elétrico, baseado no monopólio rumo a um setor competitivo, calcado no mercado de energia.
“Partia-se do diagnóstico de que o problema do setor elétrico era devido ao nosso modelo de mercado, como se o monopólio fosse intrinsecamente ruim, e o mercado competitivo bom, sem considerar as especificidades do nosso setor elétrico, calcado em grandes usinas geradoras, como Itaipu, interligadas nacionalmente. O que era nossa vantagem passou a ser visto pela nova burocracia estatal, sem visão de país, como um defeito a ser sanado no mercado competitivo”, complementa o pesquisador.
Contudo, foi nos primeiros governos Lula que foi instaurado de forma bem-sucedida o mercado competitivo de energia, com os ambientes do mercado livre e do mercado regulado. Segundo Bicalho, tratou-se de uma escolha do governo, mais especificamente do ministério da Fazenda representado por Antônio Palocci, quando havia a chance de se retomar o antigo modelo, por causa dos impactos negativos da tentativa de reforma do setor, cujo efeito foi o apagão de 2001. “Desta maneira, várias propostas para retomada do setor elétrico com base no setor público, contidas no Instituto Cidadania, por exemplo, foram postas de lado”.
Bicalho também é um crítico severo do mercado livre de energia, estabelecido pelos governos petistas: “é uma aberração, que serve para repassar os custos para o consumidor final, sobrecarregando o mercado regulado”.
Assim como o é do processo de privatização da Eletrobras, que começou nos anos 1990, durante o governo FHC, com o início da perda da holding estatal sobre o sistema interligado, e ganhou força com a instauração do mercado livre de energia. Culminou com a transferência do controle da companhia para o setor privado através do processo de capitalização durante o governo Bolsonaro e com a homologação de todo o processo no governo Lula 3.
“Tudo foi feito de forma muito melancólica, sem uma única audiência pública no Congresso, de uma forma totalmente ilegal. O governo Lula poderia revisar todo o processo e tentar retomar o controle da Eletrobras, mas preferiu buscar um acordo com os acionistas, que já calculavam que o processo poderia ser anulado”, comentou. Assim, o processo de privatização da Eletrobras se encontra homologado com a aceitação da mediação imposta pelo STF, em que o governo se contentou em ganhar três assentos no Conselho de Administração e mais um no Conselho Fiscal – este reservado ao ex-ministro da Fazenda Guido Mantega.
Bicalho também é um crítico das políticas de transição energética. Reconhece que são imposições externas ao setor elétrico, com justificativas ambientais, mas que terminam por encarecer a energia: “a geração de ‘energia limpa’ na forma de solar e eólica coloca o sistema elétrico em um viés de aumento de custos e tarifas repassadas para o consumidor. Se hoje temos um quarto dos consumidores fazendo uso da tarifa social, dentro das atuais condições, a tendência é termos um percentual maior de pessoas nessa condição, daqui a algum tempo”.
Então, assim sendo, qual seria a solução para todas essas dificuldades?
“O acesso à energia elétrica é um direito do cidadão e uma obrigação do Estado. Isso é mais importante do que ter várias empresas competindo, mas de nada vale se elas não podem garantir esse direito. É preciso que a sociedade, os movimentos sociais, se organizem em torno dessa pauta, pois só assim revertermos esse quadro em que, no futuro, alguns terão acesso à energia e outros não. Energia elétrica é civilização, são as luzes do progresso”, pontifica.
E termina acrescentando: “reconstruir o sistema elétrico, menos com uma visão de mercado e mais com uma visão de direito, não será mais difícil do que foi construir o nosso sistema elétrico interligado, com base nos grandes empreendimentos, tal como os idealizadores de Furnas fizeram nos anos 1930 e 40 em Minas Gerais, vai demandar muito planejamento, mas é possível”.