
Está viralizando nas redes o trecho do debate, no podcast 3 Irmãos, entre Rubem Gonzalez e Paulo Kogos. Em um determinado trecho, já no final, este último critica o ex-governador Leonel Brizola pela história, muitas vezes repetidas, e que virou uma lenda urbana, de que Brizola teria proibido a polícia de subir os morros do Rio de Janeiro, onde se situam grandes favelas, para “prender bandidos”.
Brizola governou o Rio de Janeiro por dois períodos, de 1983 a 1987, e de 1991 a 1994. Época de grandes crises econômicas, com alta inflação, em que as populações de favelas aumentaram significativamente até mesmo pelo êxodo rural, forte nas décadas de 1950 a 70, mas que ainda tinha presença nos anos 1980.
Brizola foi uma das lideranças do processo de abertura política e redemocratização, à medida em que o Regime Militar chegava ao fim, vitimado, principalmente, por esta crise econômica – crise esta efeito das políticas econômicas adotadas pelo Regime, a despeito dos grandes avanços na infraestrutura do país. Se é ponto pacífico na historiografia que houve dedo de Washington no golpe que instaurou o Regime Militar (tal como os últimos documentos desclassificados por Trump neste ano não param de mostrar), menos se fala da interferência dos EUA na transição para democracia. Mas isso é assunto para outra conversa…
Uma das principais características do Regime Militar foi a total liberdade para os agentes públicos de segurança e também militares para executar operações policiais, muitas de questionável legalidade. Está aí o filme “Ainda Estou Aqui”, premiado no Oscar, para mostrar: em uma noite de janeiro de 1971, o ex-deputado Rubens Paiva é levado de sua residência por agentes do Estado, não identificados, supostamente para prestar depoimento, enquanto outros agentes passam a noite toda na residência dele no Leblon, junto com a esposa, as filhas e o filho caçula de Paiva. Depois, a esposa e uma das filhas são levadas para uma dependência das Forças Armadas para depoimentos. Rubens Paiva nunca mais volta pra casa e só ganha uma certidão de óbito 25 anos depois.
O caso de Rubens Paiva é extremo, mas mostra que não havia apreço por normas e procedimentos na prática do direito penal naquele tempo. Se isto aconteceu com uma família de classe média alta do Leblon, pode se imaginar que não havia critério nenhum nas abordagens policiais nas zonas mais desfavorecidas. Não havia necessidade de mandado judicial, suspeição ou algo do tipo para policiais entrarem em moradias humildes, o que gerava todo o tipo de abuso das forças policiais. Não que o crime já não se fizesse presente nessas favelas e que grupos criminosos não começassem a se organizar, mas não havia critérios rígidos para as forças de segurança agir.
Empossado em 1983, Brizola buscou mudar essa abordagem: as operações policiais nas favelas poderiam e deveriam continuar, mas deveriam seguir critérios. Uma parte da polícia, acostumada com a anarquia que prevalecia (a “anarquia militar” que marcou a relação entre as Forças Armadas durante o Regime Militar, sobre a qual discorre Elio Gaspari em sua série de livros sobre a Ditadura), ficou insatisfeita e partiu para o ataque contra Brizola. Por outro lado, boa parte dessa “banda podre” associou-se ao crime organizado, sobretudo a cúpula do Jogo do Bicho, assim como aos esquadrões da morte e o embrião das milícias.
A Constituição de 1988 veio em seu Artigo 5, que trata dos direitos e garantias individuais, a por um freio na liberalidade do poder de polícia sobre o cidadão, como a inviolabilidade do domicílio e horário diurno para os mandados de busca e apreensão – tornados norma já pelas forças policiais. Mas evidentemente que há outro fator que pesa na discussão, que a ascensão dessas facções criminosas, que surgiram nos presídios mas exercem hoje, mais de 30 anos depois da saída de Brizola do governo do Rio, um controle territorial e imposição do terror nas comunidades não imagináveis durante a década de 1980. Antes restritas a periferias de Rio e São Paulo, hoje elas estão espalhadas para todas as regiões do país, incluindo a Amazônia. Os efeitos, todos nós sentimos no país.
Por outro lado, são os partidários da pretensa “direita” que vem hoje atacar Brizola, sejam eles mais identificados com o bolsonarismo ou com a ideologia confusa do “anarcocapitalismo”, ao mesmo tempo em que se mobilizam para atacar as arbitrariedades cometidas com os presos do 08 de janeiro, aos quais estariam sendo negados o devido processo legal e a proporcionalidade das penas e multas, tal como vendo impostas pelo STF. Não reconhecem que Brizola, ao impor limites para operações policiais, enquanto chefe do Executivo fluminense, quis fazer os direitos individuais de todos, suspeitos ou não, alvos dessas operações. Os mesmos direitos que os partidários da anistia de hoje estariam sendo violados. É hipócrita pedir abuso policial de um lado e gritar pelas vítimas, de outro, levando em consideração posição ideológica, racial ou de classe daqueles que sofrem.