
Geraldo Luís Lino
Há 80 anos, em maio de 1945, encerrava-se a fase europeia da II Guerra Mundial, o conflito militar mais sangrento e determinante da História. No Pacífico, o Japão ainda resistiria por pouco mais de três meses.
A data exata depende do celebrante. Para os EUA e os países da Europa Ocidental, o dia 8; para a Rússia, o dia seguinte. A rendição “oficial” ocorreu em Berlim, na noite de 8 de maio, quando já era o dia 9 em Moscou. Mas a Holanda celebra o seu Dia da Libertação em 5 de maio, que marca a rendição das tropas alemãs no país às forças anglo-canadenses do marechal Bernard Montgomery. E houve antes uma rendição alemã separada no Norte da Itália, em 29 de abril, ocorrida no âmbito das negociações entre altos representantes da hierarquia nazista e da inteligência dos EUA liderados pelo sibilino Allen Dulles, chefe do Gabinete de Serviços Estratégicos (OSS) na Suíça (que viria a ser o mais longevo diretor da CIA, sucessora do OSS, e uma das figuras mais influentes do pós-guerra).
Nessas negociações, foi articulada parte da grande barganha que permitiu a retirada da Alemanha de ativos das grandes empresas alemãs que haviam construído a máquina de guerra nazista, para que não fossem apreendidos pelos Aliados, e de uma vultosa parte dos valores capturados pelos nazistas nos países ocupados, juntamente com a fuga de milhares de hierarcas do regime, inclusive numerosos criminosos de guerra, que se refugiaram na Itália, Espanha, Egito, Argentina, Paraguai, Chile, Brasil, Canadá, EUA e outros países. Um montante considerável daqueles valores retornaria depois à Alemanha Ocidental, em muito contribuindo para o “milagre econômico” das décadas de 1950-60.
Em troca, os EUA receberam os principais segredos tecnológicos alemães (inclusive, mísseis de longo alcance e até mesmo componentes de armas atômicas), muitos dos cientistas e técnicos que os desenvolveram e, não menos importante, o núcleo da inteligência militar alemã na Frente Leste, incluindo pessoal-chave e arquivos, já visando à planejada Guerra Fria com a União Soviética, em operações que seriam coordenadas pela CIA, a partir da sua criação, em 1947.
A barganha, que pavimentou o caminho para o peculiar intercâmbio de aliados e inimigos no confronto Leste-Oeste, com desdobramentos que chegam aos dias de hoje, é um dos segredos da guerra ainda pouco explorados pelos pesquisadores, sendo praticamente ignorado pela “história oficial”.
Como também são convenientemente ignoradas as contribuições decisivas de grandes empresas e bancos estadunidenses e britânicos para a ascensão e consolidação do regime de Hitler, relações que, em vários casos, se mantiveram até mesmo durante a guerra.
Em vez disso, nos últimos anos, tem havido nas potências ocidentais um grande empenho para se reescrever a história do conflito com finalidades estritamente políticas e propagandísticas, de modo a menosprezar o papel nela desempenhado pela URSS ou corresponsabilizá-la por ele, a par com o nazifascismo, visando, evidentemente, a transferir tais atributos à sua putativa “herdeira política”, a Federação Russa.
Em 2019, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução revisionista proposta pela Polônia, ressaltando “que a II Guerra Mundial, a guerra mais devastadora na história da Europa, foi iniciada como um resultado imediato do notório Tratado de Não-Agressão nazista-soviético de 23 de agosto de 1939, também conhecido como Pacto Molotov-Ribbentrop, e seus protocolos secretos, pelos quais dois regimes totalitários que compartilhavam o objetivo da conquista mundial (sic) dividiram a Europa em duas zonas de influência (sic)”.
Para baixo do tapete histórico, foram varridos os insistentes esforços soviéticos, até às vésperas da guerra, para a formação de uma frente defensiva contra as notórias pretensões expansionistas do Führer, devidamente rechaçados pelo Reino Unido, França e Polônia (que pagou caro pela obsessão antibolchevique).
Um caso recente foi a celebração do 80º aniversário da libertação do campo de prisioneiros de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em 27 de janeiro deste ano, que contou com personalidades como o rei Charles III do Reino Unido, o chanceler alemão Olaf Scholz e o presidente francês Emmanuel Macron, mas nenhum representante da Rússia. Em numerosos relatos da mídia internacional e até mesmo em sítios oficiais, como o da embaixada dos EUA em Varsóvia e o da UNESCO, não havia uma menção sequer aos libertadores do Exército Vermelho, embora não faltassem manifestações de amizade a Israel, país que sequer existia na época.
Em 1º de maio, o presidente estadunidense Donald Trump juntou-se ao concerto revisionista com uma bizarra postagem na rede TruthSocial, na qual afirmou:
“(…) Nós fizemos mais do que qualquer outro país, de longe, em produzir um resultado vitorioso na II Guerra Mundial. Por isso, estou renomeando 8 de maio como o Dia da Vitória para a II Guerra Mundial e 11 de novembro como o Dia da Vitória para a I Guerra Mundial. Nós vencemos ambas as guerras, ninguém chegou nem perto de nós, em termos de força, bravura ou brilho militar, mas nós nunca celebramos nada. (…)”
Qualquer historiador sério sabe que a URSS foi, de longe, a principal responsável pela derrota do nazifascismo, pela qual pagou um preço altíssimo em vidas humanas, nada menos que 27 milhões de pessoas, entre militares e civis. Embora o nível da população pré-guerra tenha sido recuperado no final da década de 1950, a guerra causou um grande desequilíbrio entre as populações feminina e masculina, que persistiu até a década de 1980.
Ademais, cerca de 80% das baixas infligidas às forças nazistas durante a guerra ocorreram na Frente Leste, pelas armas do Exército Vermelho.
Em meados de 1944, a Wehrmacht tinha 228 divisões no Leste, contra 58 em toda a frente ocidental entre os Bálcãs e o Norte da Itália e a Noruega, sendo apenas 11 na França. Quando os Aliados ocidentais desembarcaram 175 mil homens na Normandia, em 6 de junho, o celebrado mas largamente exagerado Dia-D, eles se depararam inicialmente com apenas cerca de 80 mil combatentes alemães. Com os reforços de ambos os lados, em meados de julho, quando os atacantes conseguiram finalmente abrir caminho para o interior da França, tais números atingiram 1,3 milhão contra 380 mil. Na Operação Bagration, iniciada em 22 de junho na Bielorrússia, as forças soviéticas alinharam 2,4 milhões de homens contra os 700 mil do ainda poderoso Grupo de Exército Centro alemão, que foi praticamente aniquilado em quase dois meses de combates ferozes, que causaram 450 mil baixas alemãs e 770 mil soviéticas.
Apenas nas batalhas de Stalingrado (1942-43) e Kursk (1943) e na Operação Bagration, as baixas fatais soviéticas superaram o total combinado das mortes de militares e civis anglo-americanos em toda a guerra.
As estimativas de mortes na II Guerra Mundial variam entre 70 milhões e 85 milhões de pessoas, das quais 50-56 milhões decorrentes das operações militares e outras 19-28 milhões como consequência de fome e doenças ocasionadas pela devastação (21-25 milhões de militares e 50-55 milhões de civis). A URSS, com seus 27 milhões, e a China, com 17 milhões, sofreram em conjunto mais perdas do que todos os demais beligerantes combinados. Para comparação: Alemanha – 7,3 milhões; Japão – 3,1 milhões; Itália – 500 mil; França – 568 mil; EUA – 420 mil; Reino Unido – 451 mil (mas a Índia perdeu 87 mil militares e 3 milhões de civis, principalmente, devido à fome e a doenças, em grande medida, decorrentes das prioridades de abastecimento para os militares).
A rigor, a história real da II Guerra Mundial apenas começou a ser devidamente esmiuçada e avaliada nas últimas décadas, com o acesso a arquivos e documentos antes inacessíveis, tanto na antiga URSS e no Leste Europeu como nos países ocidentais (nos EUA e Reino Unido, ainda há arquivos que só poderão ser abertos em 2045), e graças a novas gerações de pesquisadores com uma visão menos influenciada pela versão maniqueísta e simplista de uma guerra da civilização contra a barbárie.
As recentes tentativas das lideranças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e da União Europeia, de reforçar essa visão obsoleta e anti-histórica, vão na contramão do esforço necessário.
Embora a guerra tenha terminado oficialmente há oito décadas, a reconfiguração da ordem de poder global que dela emergiu se prolonga até a atualidade. Por isso, um conhecimento adequado dos fatos relevantes é de grande valia para orientar o posicionamento diante da célere mudança de época contemporânea.
Possivelmente, a melhor síntese das responsabilidades pela guerra é a do respeitado historiador inglês A.J.P. Taylor, em seu livro “As origens da Segunda Guerra Mundial”, de 1961: “Retrospectivamente, embora muitos fossem culpados, nenhum foi inocente. A finalidade da atividade política é proporcionar paz e prosperidade, e quanto a isso todos os estadistas falharam, qualquer que fosse a razão.”