
A última visita de Lula à China rendeu frutos nos termos do pacote dos acordos assinados com o Brasil, que envolvem mais de 30 pontos.
Um deles trata da cooperação técnica entre a Dataprev e a Huawei, para construção da infraestrutura nacional de dados e Inteligência Artificial (IA), o Centro Virtual de Pesquisa e Desenvolvimento em IA. A Dataprev é a empresa pública, vinculada ao Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, responsável pelo armazenamento e gestão de dados sociais dos brasileiros, incluindo aí os dados previdenciários.
A Huawei, por sua vez, é uma das maiores empresas de tecnologia do mundo não estadunidense. A empresa está na mira dos EUA há muito tempo. Recentemente, o governo dos EUA anunciou que qualquer país que use chips avançados, da linha Ascend, usados em IA, violarão suas regras de exportações, pois acredita que a Huawei estaria roubando tecnologia da Nvidia.
As tensões entre a Huawei e os EUA antecedem mesmo o primeiro mandato de Trump na presidência, mas se intensificaram desde então. A rede 5G desenvolvida pela empresa chinesa está banida dos EUA e vários países europeus vêm colocando restrições, com a justificativa de segurança de dados para o governo chinês.
Outro acordo assinado pelo Brasil na China foi o Memorando de Entendimento entre o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) e o Centro de Monitoramento e Análise em Prevenção de Lavagem de Dinheiro da China relativo à Cooperação na Troca de Inteligência Financeira relacionada à Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo.
O COAF esteve no centro de uma polêmica durante o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro. Quando assumiu, tirou o órgão do Ministério da Fazenda e o repassou para o Ministério da Justiça, então comandado por Sérgio Moro, para depois repassá-lo ao controle do Banco Central. O COAF controla as movimentações financeiras e a perda de controle sobre o órgão causou estremecimento da relação entre Bolsonaro e o ex-juiz, levando à sua demissão no ano seguinte.
Também foi assinado um memorando de entendimento entre a Bolsa de SP (B3) e a Bolsa de Shenzhen (ETF Connect). Pelo acordo, o mercado de capitais brasileiro pode financiar empresas estrangeiras, sem controle das autoridades brasileiras.
Mas talvez o principal acordo, que mais chamou a atenção da mídia, foi o acordo para ampliação da participação chinesa no setor ferroviário e para que as empresas chinesas possam acompanhar com antecedência os leilões de concessões de transportes no Brasil.
O anúncio gerou protesto das associações e sindicatos do setor, que ressaltam que não há vácuo no setor que precise ser preenchido por empresas chinesas, pedindo financiamento para que “o Estado brasileiro zele por nossas capacidades, para garantir a geração de emprego e renda aos brasileiros”.
Há cerca de um mês, quando anunciou sua política tarifária, Trump falou que os países do continente americano teriam que escolher entre a China e os EUA. Lula parece estar aceitando o desafio de escolher a China, ao invés de tentar manter um distanciamento do dilema imposto, pelo escopo dos acordos assinados em Pequim.
Há algumas décadas, a relação do Brasil com a China foi definida por ambos como uma parceria estratégica, ou seja, uma relação entre iguais, entre dois países que estariam no rumo do desenvolvimento econômico pleno, tentando alcançar os países do G7 (EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá). Em 1990, o PIB chinês era praticamente equivalente ao brasileiro, mas desde então se tornou um múltiplo do nosso.
O comércio do Brasil com a China é quase três vezes maior do que com os EUA, mas ainda mantemos um superávit comercial com os asiáticos com base na exportação de commodities. A relação, que um dia já foi entre iguais, hoje é desiguais. Contudo, a China estrategicamente ainda mantém a retórica terceiro-mundista de motor do “Sul Global” e como país responsável de forma altruísta pela periferia do capitalismo por meio de suas parcerias com os países subdesenvolvidos. Discurso esse que é homologado por diversos especialistas em China no Brasil.
Já os acordos com a China seriam o que a oposição ao governo gostaria que fossem realizados com os EUA, ainda mais com Trump no poder, apesar destes não terem o peso econômico, nem vontade política, para fecharem com o Brasil.
EUA e China seguem como adversários e adotam posturas distintas no cenário internacional. A antiga potência “anti-imperialista” que hoje é a “oficina do mundo” defende o livre-comércio, enquanto Trump busca retomar as políticas protecionistas do Sistema Americano, em busca da recomposição de seu parque produtivo. Os governantes sabem que só uma economia industrial produzindo desde aço até os setores mais intensivos em tecnologia garantem poderio militar e seu status como potências globais.
Mas no Brasil, tanto governo como a oposição ainda preferem correr atrás de um ou de outro, abdicando da tentativa de usar as riquezas nacionais em prol do fortalecimento da capacidade produtiva do país, como se essa viesse, exclusivamente, de investimentos externos.