Wellington Calasans
Desde as primeiras horas do dia 7 de outubro de 2023, ao comentar ao vivo na TPA (Televisão Pública de Angola) sobre os ataques em curso, alertei com cautela: o Hamas não surge como um ator isolado ou espontâneo, mas como parte de uma engrenagem mais complexa — fruto, em grande medida, de decisões estratégicas israelenses ao longo das décadas.
Afirmei, com base em registros históricos amplamente documentados, que o Hamas foi inicialmente incentivado por Israel como contraponto à Organização para a Libertação da Palestina (OLP), e que essa relação ambígua jamais foi inteiramente rompida.
Naquele momento de comoção global, insisti que era essencial evitar reações impulsivas e examinar com rigor os indícios de operações de bandeira falsa, especialmente diante da longa história de manipulação geopolítica na região. Fiz a escolha certa.
Na época, minhas palavras foram recebidas com ceticismo, quando não com hostilidade. Contudo, já em março de 2019, o próprio primeiro-ministro Benjamin Netanyahu havia declarado abertamente a parlamentares de seu partido: “Qualquer um que queira impedir a criação de um Estado palestino tem de apoiar o fortalecimento do Hamas e a transferência de dinheiro para o Hamas”.
Essa frase, longe de ser um deslize, revelava uma política de Estado: manter Gaza e Cisjordânia divididas, enfraquecer Mahmoud Abbas (que começava a tentar se deslocar do controle israelense) e a Autoridade Palestina, e usar o Hamas como pretexto para justificar a ausência de negociações de paz. O que parecia teoria conspiratória para muitos era, na verdade, estratégia declarada.
Somente agora, meses após o 7 de outubro, setores da imprensa internacional — incluindo veículos tradicionalmente alinhados com a narrativa israelense — começam a reconhecer publicamente essa “parceria perversa” entre Netanyahu e o Hamas.
Artigos do Times of Israel, Haaretz e até o Wall Street Journal têm relembrado como Israel, por anos, tolerou — e até encorajou — o fortalecimento dos islamitas em Gaza, justamente para sabotar qualquer avanço rumo a um Estado palestino unificado.
Essa reapreciação tardia confirma o que analistas críticos vêm dizendo há décadas: o conflito não é apenas entre israelenses e palestinos, mas também uma disputa interna orquestrada por interesses políticos e de inteligência.
Documentos e depoimentos históricos corroboram essa visão. Segundo historiadores como Zeev Sternhell e analistas do Centro de Estudos Estratégicos, Israel via no Hamas uma ferramenta útil para dividir o movimento nacional palestino entre secularismo e islamismo.
Até mesmo o ex-congressista norte-americano Ron Paul afirmou, já em 2011, que “Israel realmente criou o Hamas” com esse propósito específico. Essa não é, portanto, uma revelação recente, mas sim um fato sistematicamente ignorado ou minimizado pela grande mídia — até que os custos humanos e políticos se tornassem impossíveis de esconder.
Hoje, diante das evidências acumuladas — inclusive o reconhecimento de que Israel permitiu o ingresso de milhões de dólares do Catar ao Hamas via cruzamentos de Gaza —, torna-se imperativo repensar as narrativas simplistas que dominaram os noticiários desde outubro de 2023.
Não se trata de defender nenhum dos lados, mas de exigir transparência histórica. A verdade é incômoda: a política de Netanyahu não apenas fortaleceu o Hamas, como também contribuiu diretamente para o cenário de violência extrema que culminou com a parceria de ambos no 7 de outubro.
E só agora, quando os escombros ainda fumegam, alguns começam a enxergar o que estava à vista de todos o tempo todo. Felizmente, sempre busquei separar a minha análise das minhas preferências. Detesto escrever texto na primeira pessoa, mas sei que sustentar uma opinião tão complexa foi uma responsabilidade enorme. Obrigado aos meus seguidores.
