Wellington Calasans
A histeria atual em torno da substituição da mão de obra humana pela Inteligência Artificial (IA) revela menos um problema tecnológico e mais uma crise de responsabilidade coletiva.
Durante décadas, seres humanos — por comodismo, ganância corporativa ou indiferença — alimentaram passivamente os algoritmos com seus dados, suas criações e até suas rotinas.
O ensino acadêmico, o jornalismo e a produção cultural foram transformados em combustível para máquinas, sem que houvesse resistência significativa ou reflexão ética sobre as consequências.
Esse processo não foi imposto de fora; foi consentido, muitas vezes celebrado como “progresso”, enquanto as estruturas sociais e educacionais se adaptavam passivamente às demandas do mercado digital.
As promessas capitalistas sempre foram sedutoras: máquinas nos libertariam do trabalho braçal e repetitivo, oferecendo mais lazer, salários mais altos e semanas de trabalho mais curtas.
No entanto, a realidade tem sido outra. Em vez de democratizar o tempo livre e a riqueza, a automação e a IA têm aprofundado as desigualdades.
Estudos recentes indicam que a IA pode impactar até 40% dos empregos globalmente, com efeitos desproporcionais sobre os mais vulneráveis.
Enquanto isso, os lucros gerados pela eficiência tecnológica concentram-se nas mãos de poucas corporações, fortalecendo um modelo econômico que prioriza a maximização de ganhos enquanto sepulta o ideal da justiça social.
O caso de Hollywood ilustra perfeitamente essa contradição. Enquanto o Sindicato dos Atores (SAG-AFTRA) protesta contra a “atriz” gerada por IA chamada Tilly Norwood — afirmando que “não é uma atriz, é um personagem gerado por um programa de computador” —, ignora-se que a própria indústria contribuiu para sua crise ao promover celebridades vazias, roteiros genéricos e narrativas desprovidas de autenticidade.
Quando a arte é reduzida a fórmulas de mercado e o talento, a um acessório secundário, a substituição por máquinas torna-se quase inevitável.
A indústria, que há anos se afastou do público com produções ideologicamente rígidas e emocionalmente rasas, agora se vê ameaçada por aquilo que ajudou a criar: a ilusão de que qualquer conteúdo, mesmo o mais mecânico, pode ser vendido como entretenimento.
A culpa, portanto, não está na tecnologia em si, mas na forma como os humanos escolheram usá-la — ou permitiram que outros a usassem por eles. A IA, por exemplo, poderia ser um poderoso recurso de apoio: auxiliando pesquisadores, ampliando a criatividade, democratizando o acesso à produção cultural.
Em vez disso, foi instrumentalizada para cortar custos, eliminar postos de trabalho e concentrar ainda mais poder. A automação, longe de libertar os trabalhadores, tem servido para intensificar a exploração e a precarização, especialmente onde não há políticas públicas robustas de requalificação ou proteção social.
O caminho adiante exige responsabilidade, não pânico. É preciso repensar o papel da tecnologia na sociedade, garantindo que seu uso sirva ao bem comum e não apenas aos interesses de acionistas.
Isso inclui regulamentação rigorosa sobre direitos autorais, proteção de imagem e redistribuição dos ganhos gerados pela IA. Afinal, se a humanidade permitiu que suas vozes, rostos e ideias fossem usados para treinar máquinas, agora deve exigir que essas mesmas máquinas trabalhem para todos — e não apenas para uma elite tecnocrática.
A alternativa não é rejeitar a IA, mas recuperar o controle sobre ela. A frase “Não sois máquinas, homens é que sois” do discurso final de Charlie Chaplin no filme O Grande Ditador, já era um apelo à humanidade, liberdade e união contra a opressão e o ódio.
Os sinais foram dados a todos. No jornalismo, por exemplo, que hoje se orgulha de ter âncora virtual de telejornais ou textos e resumos produzidos pela IA, aquela mecanização do pensamento era ensinada como “elementos do jornalismo” (quem, quando, como, onde, o quê, por quê), mesmo com a distorção da notícia publicada como verdade.
Destaco o jornalismo, pois ele contribuiu ativamente ao longo das últimas duas décadas — especialmente com a ascensão das redes sociais e da lógica de cliques — para sua própria substituição pela Inteligência Artificial ao priorizar velocidade, viralização e algoritmos em detrimento da apuração rigorosa, do contexto e da profundidade.
A substituição de reportagens investigativas por listas, clickbaits e opiniões polarizadoras, muitas vezes geradas com mínima supervisão humana, por exemplo, ignora o tratamento das notícias como commodities descartáveis.
Nesse sentido, o jornalismo forneceu à IA exatamente o tipo de texto estruturado, repetitivo e desprovido de alma que máquinas aprendem com facilidade — tornando o jornalista, aos olhos do capital, um custo evitável.
Assim, não foi a IA que substituiu o jornalista ou outros profissionais; foi o conjunto de profissionais robotizados que se tornou substituível.
Na música o caminho foi o mesmo. Grupos musicais forjados em estúdios ganharam espaço e premiaram a mediocridade, impedindo que o talento fosse pré-requisito para esta importante manifestação artística e cultural.
