Wellington Calasans
O monopólio legítimo da força é, por definição weberiana, uma das funções centrais do Estado moderno. É ele — e somente ele — que detém o direito de usar a coerção física para garantir a ordem, a segurança e a aplicação das leis.
Quando esse monopólio se esgarça, quando facções armadas passam a impor regras, cobrar “impostos” e decidir quem vive ou morre, o que se instaura não é liberdade, mas caos.
O que vimos hoje no Rio de Janeiro — com tiroteios, bloqueios de vias, ataques a bases policiais e pânico generalizado — não é um “protesto” ou um “sinal de resistência”, mas a evidência nua e crua de que o Estado perdeu o controle sobre seu próprio território. Sem esse controle, não há cidadania, não há direitos, há apenas sobrevivência.
A romantização da criminalidade, infelizmente ainda presente em certos discursos, é uma ilusão perigosa. Não há “justiça paralela”, não há “governança comunitária” nas mãos de milícias ou de facções do tráfico.
O que existe é extorsão, medo, violência arbitrária e dominação. Transformar bandidos em “líderes locais” ou “resistentes” é negar a dignidade das vítimas — aquelas que são silenciadas, desaparecidas, humilhadas diariamente.
A violência que paralisou o Rio não é um acidente; é o sintoma de um colapso institucional profundo, onde o crime organizado não apenas opera à margem do Estado, mas muitas vezes dentro dele, infiltrado em suas estruturas.
Esse colapso não é fruto do acaso. A chamada “redemocratização” do Brasil, iniciada em 1985, falhou na construção de instituições sólidas, imparciais e capazes de proteger a soberania popular.
Em vez disso, criou-se um sistema onde o poder público foi capturado por redes de corrupção, clientelismo e, cada vez mais, pelo crime organizado. Hoje, o Brasil flerta perigosamente com a condição de narcoestado: onde o tráfico financia campanhas, milicianos ocupam cargos eletivos e a polícia, em muitos casos, atua como braço armado de interesses privados. As instituições não estão apenas fragilizadas — estão ocupadas.
Diante disso, é urgente enterrar a ladainha de que o Brasil é uma democracia funcional. Uma democracia pressupõe o direito básico de ir e vir, de viver sem medo, de ter acesso à justiça e à segurança.
Quando o cidadão comum é acuado em sua própria casa, quando escolas fecham por medo de confrontos, quando hospitais param por falta de segurança, não há democracia — há uma farsa. O que existe é uma teia de ditaduras locais, invisíveis nos mapas oficiais, mas reais nas ruas, nos becos, nos morros e até nos bairros nobres.
Sem Estado capaz de exercer seu monopólio da força com legitimidade e eficácia, resta apenas o caos organizado pelo crime. E nesse caos, quem sofre é sempre o povo — não os políticos, não os narcotraficantes blindados, mas as mães que não podem levar os filhos à escola, os trabalhadores que perdem o emprego por não poderem circular, os jovens que têm seu futuro roubado pela violência ou pela cooptação.
Restaurar o monopólio da força não é um apelo por mais repressão cega, mas por mais Estado organizado e funcional — presente, justo, soberano e ao serviço da população, não de facções do morro, dos gabinetes, das togas ou do colarinho branco.
