Cada ano, no dia de seu aniversário, 19 de abril, o presidente Getúlio Vargas dava um jeito de sair de circulação, deixava o Rio, então Capital da República, escondia-se na casa de algum amigo para escapar das filas de abraços e cumprimentos que de qualquer modo não o deixariam trabalhar.
Getúlio preferiria, em vez de comemorar o seu aniversário, que os amigos e admiradores comemorassem com ele outros aniversários, não relacionados a ele pessoalmente, mas ao Brasil. E de todas essas outras datas, suas preferidas eram 1º de maio e 3 de outubro, que marcaram toda a sua vida e seu destino.
Foi no 1º de maio de 1940 que Getúlio decretou o primeiro salário mínimo. E foi no 1º de maio de 1954 que o aumentou em 100%, num momento em que a economia brasileira era a que mais crescia no mundo e aguentou perfeitamente bem esse tranco que lhe aumentava exponencialmente o mercado interno.
Foi a 3 de outubro que eclodiu a Revolução de 1930, a segunda proclamação, agora para valer, da Independência e da República. Foi a 3 de outubro de 1950 que o Brasil teve a oportunidade de levar Getúlio de volta à Presidência da República, agora pelo voto direto. E foi a 3 de outubro de 1953 que Getúlio sancionou a lei de criação da Petrobrás*, dando ainda mais realidade ao compromisso de emancipar o país dos laços coloniais que o prendiam a um passado de atraso, pobreza e exclusão social.
Se ainda hoje nos lembramos de Getúlio no 19 de abril, é porque nos lembramos de todos esses 1º de maio e 3 de outubro e de seu significado. Hoje, mergulhados na tragédia da pandemia e de um governo antinacional que tenta novamente acabar com a Petrobrás, a lembrança de Getúlio, em qualquer momento, é a afirmação para nós mesmos de que o Brasil pode de novo soltar-se dos laços coloniais com que tentam prendê-lo outra vez.
Como de outras vezes, o Brasil está bem retardatário em relação ao que acontece no mundo. Poderíamos estar aproveitando o que acontece nos Estados Unidos (EUA) com o despejo do Trump e o novo New Deal do Biden. Foi o que Getúlio fez com o New Deal do Roosevelt e assim nos deu Volta Redonda.
Volta Redonda foi só o começo e transformou o Brasil em uma das dez maiores economias do mundo. De certo modo Volta Redonda nos deu a Petrobrás, e a Petrobrás, de certo modo, nos colocou em sexto lugar entre as economias mundiais. Lugar do qual recuamos muito, porque o revide veio violento e aproveitou a onda reacionária que levara Trump ao poder. Mas a onda agora reflui.
Nos EUA a luta contra a Covid leva o presidente Biden a avançar muito mais do que se supunha, e até no Brasil alguns economistas antes adeptos da teoria do Estado mínimo reconsideram suas posições. Isso pode chegar a alguns setores do governo, mas não chega a seu núcleo duro e não atravessa a blindagem que isola Bolsonaro em sua paranoia e em suas certezas inabaláveis e esquizofrênicas.
Certezas das quais se aproveitam alguns senhores espertos, como o ex-presidente da Petrobrás, o tal Castello Branco, para consumar a venda da Refinaria Landulpho Alves, a primeira de nossas refinarias, antes do fim de um mandato para o qual não será reconduzido.
A Petrobrás já mostrou que tem sete vidas. Sobreviveu a Roberto Campos no primeiro governo militar, fortaleceu-se nos seguintes, sobreviveu ao Governo Collor, a FHC, a Temer e agora luta pela vida, querendo sobreviver a Bolsonaro.
A sofreguidão com que tentam acabar com a Petrobrás vem mostrando, ao longo de mais de 60 anos, que Getúlio fincou muito firmes as fundações do Brasil que nasceu de suas mãos. Ele sabia que a Petrobrás podia ser o símbolo mais vivo de sua herança e deu a vida por ela, depois de ainda na juventude ter adquirido uma lúcida compreensão dos desafios que o Brasil tinha pela frente.
Já em 1906, com apenas 24 anos de idade, Getúlio identificava e denunciou as verdadeiras razões do atraso econômico do Brasil. Foi no discurso de saudação ao presidente eleito Afonso Pena, que visitava Porto Alegre, em nome de seus colegas da Faculdade de Direito, e Getúlio não se limitou a um pronunciamento protocolar e anódino.
Nesse discurso Getúlio levantou um tema que surpreendia, suscitado por um jovem estudante de Direito, não de economia, num país e numa cidade situados na periferia dos grandes centros financeiros do mundo, um tema ao qual estava alheia a maioria dos protagonistas da vida política do país, ainda embalada pela ilusão de que o Brasil era e deveria continuar a ser um país “essencialmente agrícola”.
Getúlio recusa esse diagnóstico. Para ele, que crescera vivendo fatos e experiências que muitos outros desconheciam e que já tinha antes da faculdade um considerável acervo de leitura histórica, o Brasil não tinha de ser definitivamente um país agrícola. É essa ilusão que causa o atraso econômico do país e a miséria de seu povo.
– Por enquanto… – diz ele (esse “por entanto” é a ressalva que encerra uma expectativa, quem sabe um compromisso…)
– Por enquanto, a Pátria futura é vítima de uma coação da história: quantas causas de estagnação pesam sobre um país novo… Amarga resultante para quem se vê coacto a comprar manufaturados no estrangeiro, os gêneros da própria matéria prima que exporta.
O Brasil já exportava, em grande quantidade e a baixo preço, minério de ferro de ótima qualidade e importava, a preço alto, praticamente todos os produtos siderúrgicos elaborados com ele – navios, locomotivas, trilhos, a novidade que era o automóvel e as máquinas que produziriam outros bens.
Tinham sido importadas da Bélgica até as grades que protegiam as árvores recém-plantadas da recém-aberta Avenida Central (futura Avenida Rio Branco), no centro do Rio, inaugurada em 1904, dois anos antes do discurso do jovem Getúlio. Era de procedência britânica (e talvez continue a mesma) a louça sanitária dos mictórios, privadas e pias comprados para as obras do Teatro Municipal, nessa Avenida do Rio, iniciadas em 1903 e inauguradas em 1909.
O Brasil tinha vivido algumas experiências de industrialização, mas sem enfrentar a coação da história denunciada por Getúlio. No Império, o futuro Barão de Mauá construíra navios com aço importado, e na Guerra do Paraguai nada menos de um terço da frota de guerra brasileira compunha-se de navios construídos no próprio Brasil, mas com aço que chegava de fora, a preços cada vez mais altos, importado em troca de minério de ferro brasileiro exportado a preços cada vez menores.
Só 60 anos depois, em 1964, é que esse tema entrou na agenda do debate econômico internacional, quando a ONU criou a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), para estudar e procurar corrigir o que se chamou a deterioração dos termos de comércio internacional, ou seja, os países pobres, em geral do Hemisfério Sul, pagarem sempre mais caro pelos produtos siderúrgicos que importavam em troca de seu minério de ferro sempre mais barato.
Isso que Getúlio vê em 1906, pelos sintomas ou pelos efeitos, é o quadro econômico contra o qual ele vai lutar pelo próximo meio século, pelos 48 anos que ainda viverá. Como tantos outros países periféricos, o Brasil era exportador de matérias-primas e importador de produtos manufaturados. Nesse momento, o minério de ferro do Brasil impressiona os técnicos das indústrias siderúrgicas da Europa e dos EUA, mas o Brasil importa até enxadas e machados, porque o regime tarifário e cambial fechara pequenas fundições que produziam essas ferramentas.
Essas poucas palavras, sobre a coação da história a estrangular o futuro de países como o Brasil, concentrarão toda a política econômica da Revolução de 30, liderada por Getúlio: fazer do Brasil um país que transforme em aço o ferro de seu subsolo, que explore seu petróleo e suas fontes de energia elétrica, que produza tratores, caminhões, automóveis e até aviões, um país não mais vítima dessa coação da história, mas protagonista e criador de seu futuro.
Dessa visão do Brasil coagido por uma economia aprisionada ao modelo colonial da exportação de produtos primários é que nasceu, já em 1931, o projeto siderúrgico que marcou o primeiro governo Vargas e resultou em Volta Redonda. Nesse momento, Getúlio não tinha como conduzir simultaneamente um projeto para o petróleo, o que veio a ser a grande marca de seu segundo governo, com a criação da Petrobrás.
Ela nasceu marcada para morrer, e a crise de agosto de 1954 só aconteceu por causa dela. No seu auge, um de seus auxiliares, o General Mozart Dornelles, foi, à revelia dele, conversar com Assis Chateaubriand, o Rei da Mídia de então, que conhecia desde a Revolução de 30, ele combatente e Chateaubriand repórter.
Chateaubriand era dono de verdadeiro monopólio privado da comunicação no Brasil. Esse poder de fogo estava voltado o tempo todo contra Getúlio, cobrando sua renúncia ou sua derrubada por um golpe. Carlos Lacerda, o mais implacável e cruel inimigo de Getúlio, fala toda noite nas TVs de Chateaubriand, pedindo a deposição do governo.
O general foi a Chateaubriand para perguntar quais as razões daquela campanha do ódio. Chateaubriand respondeu:
– É só o Presidente desistir da Petrobrás que eu tiro o Lacerda da TV e entrego a quem ele quiser para fazer a defesa do governo.
Espantado com o preço da chantagem, o general voltou para o Palácio do Catete, sede do governo, e se aconselhou com Tancredo Neves, seu cunhado e ministro da Justiça. Devia contar a Getúlio do encontro com Chateaubriand e seu resultado?
– Deve sim, respondeu Tancredo. Mas nós dois sabemos que o presidente morre, mas não desiste da Petrobrás.
Dias depois, Getúlio sacrificou a própria vida e com isso salvou a Petrobrás e toda a herança de seus dois governos. É por isso que comemoramos, além de outras datas, a do seu nascimento.
José Augusto Ribeiro é jornalista, autor de A Era Vargas.
* N.R.: o autor opta pela grafia original, tal qual criada por Getúlio.
Com informações Monitor Digital