Por Diego de Pirajá.
Imagem: “Bumba-meu-boi” de Orlando Fuzinelli.
Definido de forma memorável por Câmara Cascudo como a presença do milênio no contemporâneo, o folclore de um povo emerge como a expressão mais fidedigna de sua unidade ao longo da história. Isso se deve ao fato de as manifestações folclóricas nacionais serem produto do espírito perene e disperso da coletividade popular, superando as cisões entre classes, castas, grupos e correntes políticas. O mesmo “Boi da cara preta” que perturba o sono de meninos “bem-nascidos” na Avenida Litorânea em São Luís persegue os pequenos “vileiros” de Lomba do Pinheiro em Porto Alegre; a mesma fé supersticiosa que impede um universitário capixaba de entrar em sua casa nova com o pé esquerdo impele um produtor rural de Araguaína a desvirar seu chinelo antes de deitar-se.
Esse poder inerente ao folclore de retratar em seus elementos a alma de um povo inspirou os grandes construtores das nações europeias a se debruçarem sobre as narrativas e as tradições populares no afã de encontrar, em meio a um arcabouço de histórias, lendas e superstições, a essência de sua nacionalidade. Os contos fabulosos reunidos pelos irmãos Grimm, as operas apoteóticas de Wagner e os poemas maviosos de Pushkin e Yershov são exemplares inequívocos desse esforço de arqueologia folclórica. Imbuídos por similar tenacidade patriótica, inúmeros intelectuais e aventureiros brasileiros lançaram-se sobre as mais diversas e distantes plagas deste país em um esforço de descobrir e compilar as crendices, mitos, lendas e comportamentos constitutivos do folclore nacional. Em meio a esse panteão de bandeirantes da alma brasileira, merecem destaque nomes como Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Edison Carneiro, General Couto de Magalhães, Monteiro Lobato, Cezimbra Jacques, Sant’Ana Neri, Carlos Koseritz e Pereira Coruja.
Neste domingo, dia 22 de agosto, comemora-se o dia internacional do folclore. Em uma data tão importante como esta, seria natural esperar que os cadernos de cultura dos grandes jornais e portais jornalísticos nacionais dedicassem copiosas páginas à disseminação e apreciação do nosso folclore, comentando a obra de folcloristas de relevo e reaquecendo na memória dos brasileiros as histórias que compõem o nosso âmago enquanto povo. Contudo, em vez do cumprimento de semelhante dever cívico, a mídia hegemônica do país dedicou-se ao trabalho vergonhoso de enlamear a tradição folclórica brasileira, estigmatizando-a com base no mesmo conjunto de mentiras, maluquices e mistificações endereçadas a todos os signos de grandeza e unidade do Brasil.
A narrativa fraudulenta que molda o mais recente ataque ao espírito popular brasileiro é mais um exemplar do “samba de uma nota só” do identitarismo – requentado tediosamente todos os dias pelos “intelequituais” da esquerda liberal. Primeiramente, constrói-se uma fábula infantilizada, protagonizada por mocinhos e vilões. Estes são representados pelos “portugueses malvadões”; aqueles, pelos “índios bonzinhos e coitados”. Em seguida, reduz-se todo o complexo e sincrético processo de formação do folclore nacional a uma suposta imposição da cultura lusitana sobre o modo de ser indígena, culminando no apagamento do segundo a partir do seu contato com a primeira. O desfecho desse festival de maldades do invasor europeu seria a produção de um genocídio epistemológico dos nossos índios, ou, em bom “academiquês”, um epistemicídio indígena.
Como já deve ter ficado translucidamente claro para o leitor que me acompanha, essa narrativa maniqueísta de opressores contra oprimidos é mentirosa e fraudulenta em todos os seus aspectos. Desde o método anacrônico e moralista de se interpretar os eventos históricos até a forma seletiva e “pragmática” de determinar o quadro de eventos a ser reconstituído: nenhum componente dessa fábula goza de qualquer valor intelectual ou rigor científico; é apenas uma mentira politiqueira (mal-) disfarçada de comentário histórico.
Destarte, o exercício de impugnação e denúncia desse conjunto de inverdades poderia render numerosas páginas. Aqui, com o intuito de não me tornar enfadonho, concentro-me na refutação dos pontos mais evidentemente inverídicos e distorcidos da narrativa supramencionada.
- Do ponto de vista cultural, defender a existência de uma unidade folclórica entre os povos que habitavam o continente brasileiro antes da chegada lusitana sob a égide do termo “epistemologia indígena” faz tanto sentido quanto dizer que os judeus israelenses, os cristãos libaneses e os maometanos do Irã praticam uma mesma religião: o “médio-orientalismo”. Na verdade, como demonstrado com fartura de documentos e registros por Câmara Cascudo em sua obra Geografia dos Mitos Brasileiros, cada povo nativo brasileiro dispunha de um conjunto particular de crenças, rituais e narrativas fundadoras. Mesmo quando se observava a presença de um mesmo personagem no folclore de grupos étnicos distintos, na maioria dos casos, a coincidência tendia a ser meramente superficial, pois cada figura folclórica ganhava forma, função, trejeitos e até nomes únicos no seio de cada população gentia. Como sublinha o grande Barbosa Rodrigues, dispersão e diversidade são as únicas constantes observadas no estudo comparativo dos diferentes folclores dos íncolas brasileiros. O Curupira, pequeno ser de cabeça pelada às margens do Rio negro, em sua viagem para o sul, ia se tornando Caapora, Caiçara e Zumbi, perdendo membros e ganhando novos atributos e comportamentos. O Saci-Pererê, caracterizado por Monteiro Lobato como a representação fantástica de um duende negro travesso em algumas populações nativas do Sul, tornava-se para os Mundurucus do Pará, Mato Grosso e Amazonas o embrião do atual Matinta-Pereira, sendo caracterizado como uma das formas de aparecimento dos seus antepassados. Para tantos outros povos, contudo, todos esses nomes foram absolutamente desconhecidos. Apesar de algum grau de confluência, produzida pelo intercâmbio entre as diferentes coletividades íncolas, as matrizes folclóricas dos ameríndios brasileiros são distintas, sendo inverídica e, mais do que isso, impossível a sua unidade.
- Demonstrada a inexistência de um “folclore indígena”, singular e unificado, é preciso também refutar a mentira em torno do suposto “genocídio epistemológico”. Um estudo minimamente sério da história de formação do folclore brasileiro deixa evidente que a interação dos portugueses com a cultura dos povos nativos não se deu no sentido de destruí-la, mas sim de conservá-la, apreendê-la, sistematizá-la e, por fim, com ela imiscuir-se. Essa inclinação sincrética e integradora dos nossos antepassados lusitanos se fez presente em praticamente todos os âmbitos da vida colonial. Os viajantes recém-chegados de além-mar aprenderam a língua do povo que os recebeu; impregnaram sua religião de animismos indígenas e totemismos africanos; desposaram mulheres da terra nova, formando uma descendência mestiça; tornaram-se mestres no emprego militar do arco; aprenderam o manejo rural da coivara; impregnaram o seu paladar com os saberes da culinária ameríndia. No terreno folclórico, os luso-brasileiros – ora por razões religiosas, ora por resultado do convívio cotidiano com os silvícolas – se embebedaram das tradições e das lendas indígenas, tornando-as suas. Naturalmente, na boca de alentejanos e açorianos, as histórias ameríndias ganharam cores ibéricas e contornos cristianizados. Os missionários jesuítas transformaram o outrora pouco conhecido Tupã em uma representação adaptada do Deus Pai das sagradas escrituras e o temível Jurupari em seu antagônico diabólico. Contudo, esse processo de caldeamento não se deu em uma via de mão única. As lendas e narrativas ibéricas também foram, aos poucos, se abrasileirando, imbuindo-se de traços africanos e nativos. As sereias portuguesas, ao encontrarem-se com o Ipupiara gentio, produziram a linda e perigosa Iara. As Mouras Encantadas, que tantas paixões despertaram nos corações de marinheiros lusos, se reencarnaram do outro lado do Atlântico nas nossas “Iracemas de lábios de mel”. É justamente desse processo de caldeamento e interpenetração de histórias, superstições e costumes que floresce o folclore brasileiro, produto desse amalgamento entre as três grandes matrizes étnicas e culturais que dão origem à nossa nação. Nesse sentido, denominar de genocídio epistemológico um processo generoso de miscigenação cultural, além de evidenciar uma profunda ignorância acerca da formação folclórica do Brasil, deixa transparecer uma amarga aversão a respeito do elemento que representa o fundamento da brasilidade: a mistura sincrética de povos e tradições distintas.
- Denunciadas as falácias da unidade folclórica indígena e do seu suposto “epistemicídio”, cabe ainda desmistificar a terceira perna da narrativa mentirosa que orienta o ataque ao folclore brasileiro: o “coitadismo historiográfico”. Ao contrário do que a literatura identitária contemporânea dissemina, as tribos indígenas habitantes do Brasil, antes da chegada dos portugueses, não viviam aqui em paz e concórdia, trocando carícias e regalos enquanto protegiam os “animaizinhos da floresta”. A verdadeira história dos povos nativos brasileiros é semelhante àquela encontrada nas demais regiões do planeta, marcada por conflitos, massacres, pilhagem e escravidão. Não raros foram os episódios de extermínio e migração forçada decorrente do enfretamento entre populações antagonizadas, sendo a expulsão dos Cariris do litoral nordestino pelos Tupis um exemplo representativo dessa rotina sangrenta. Em face das rivalidades existentes entre os diferentes ajuntamentos silvícolas, comuns foram as alianças militares entre nativos e europeus, firmadas no esforço bélico de destruição do inimigo ameríndio. Na extinta França Antártica, Tamoios se aliaram aos franceses não com o intuito de enfrentar os portugueses, mas sim de defenestrar o imperialismo Tupi, que se aproximava dos limites de seus domínios.
Portanto, a narrativa maniqueísta que identifica os indígenas como “coitadinhos” vitimizados pela maldade europeia é duplamente falsa: tanto por prescrever uma unidade inexiste entre os íncolas, quanto por banhar em moralismo oco processos históricos guiados pelo pragmatismo político-militar e pelo esforço de sobrevivência.
Porém, apesar de similar aos demais projetos imperiais em sua violência, a empresa lusitana na América possui algumas particularidades. Aqui, diferente das colonizações francesas, holandesas, espanhóis e inglesas, ao lado de toda a dor gerada pelas guerras de conquista e pela exploração da mão de obra escrava, houve sempre algum grau de convivência, intimidade e miscigenação entre os três grandes troncos étnicos que formaram o Brasil. O mesmo colonizador ibérico que se batia contra tribos inimigas nas cercanias do seu latifúndio, regressava aos braços de sua mulher indígena e de seu filho mestiço ao final do dia. O mesmo senhor de engenho que explorava de forma hedionda a força de trabalho do escravo na bagaceira, participava alegremente das cerimônias de coroação do Rei de Congo na Bahia, tratando o recém-coroado pela alcunha de Vossa Majestade. É justamente por causa dessa integração temperada através dos séculos da vida colonial que, apesar dos enormes problemas sociais enfrentados no Brasil de hoje, nosso país se vê livre de qualquer forma de apartheid étnico-cultural, instituição tão presente no mundo anglo-franco-germânico.
Apesar de envoltos em uma linguagem gordurosa e “academiqueira”, os ataques dirigidos ao folclore brasileiro neste dia 22 de agosto não têm nada de jornalístico ou intelectual. São apenas panfletagem ideológica rasteira produzida com um objetivo muito claro em vista: vilipendiar um dos pilares fundadores do espírito da brasilidade – o nosso folclore nacional. Os porta-vozes de tais mentiras são os mesmos que caluniam a nossa fé, a mestiçagem da nossa gente, a altivez da nossa produção artístico-literária e a integridade da nossa língua.
Em última instância, são lacaios e serviçais das forças endógenas e externas que anseiam pela destruição do Brasil. Para eles, a grandeza desta nação é uma ofensa e a força da nossa unidade é uma ameaça.
No entanto, ainda que numerosos, ataques como o deste dia 22 de agosto, no fim das contas, têm um efeito contrário ao intentado. Quanto mais o viralatismo das correntes políticas e acadêmicas antinacionais ladra e rosna contra a fortaleza da brasilidade, mais o povo toma ojeriza de tais ideias. Basta dar uma volta em qualquer cidade de interior ou bairro suburbano para rapidamente notar a “popularidade” da agenda identitária – e de seus proponentes – em meio aos contingentes majoritários da massa humana brasileira.
Essa situação de contradição me faz lembrar das palavras do meu velho pai, homem impregnado até as vísceras no folclore do nosso país. Toda vez que ele se depara com alguém se engajando em alguma atividade que lhe renderá efeitos contrários aos desejados, o sábio Seu Zé Ricardo diz: “isso é um chute de saci – quanto maior a força da pernada, maior a altura da queda”.
Felizmente para nós, as ”penas-alugadas” que atentam diuturnamente contra o espírito brasileiro, justamente por serem alérgicos a essa riqueza, não têm capacidade intelectual de compreender o oceano de sabedoria inscrito nesse adágio folclórico. Que continuem atacando a cultura do Brasil. Quanto maior o ódio impingido nos seus “chutes de Saci”, maior será a sua queda!