O colunista J.R. Guzzo aproveitou seu espaço na revista Oeste para destilar mágoa contra as Forças Armadas. Talvez pela inépcia da atual oposição, outrora governo, e do silêncio de seu líder, agora de volta ao país depois de sua temporada na Flórida, usa a crise de segurança pública no Rio Grande do Norte para atacar a instituição, questionando até mesmo os gastos da Defesa.
Não que não tenha razão em criticar a postura do governo em relação ao combate à criminalidade e, sobretudo, ao crime organizado, mas não convém a usar a crise de segurança atual para questionar o papel das FFAA. Se estas poderiam ser usadas no combate à criminalidade fora do controle, em ações violentas contra a sociedade arquitetadas de dentro dos presídios, tal função deve ser designada pelo presidente da República e por seu ministro da Justiça, na posse de suas funções como formuladores de uma política de segurança pública devida.
Na verdade, o que parece estar por trás dessa postura do sr. Guzzo, em consonância com a linha editorial do veículo para o qual escreve, é usar as FFAA como bode expiatório para a derrota do bolsonarismo no ano passado. Frequentemente, o ex-presidente se escorava no carisma da instituição, em nomeações de ex-militares para cargos-chave, para tocar seu governo. Seu governo, representado na figura tétrica do seu ministro Paulo Guedes, elegia os servidores públicos como empecilho para a administração pública, o que se substanciou em ausência de aumentos salariais nesses quatro anos. As vantagens, para algumas categorias, foram seletivamente concedidas, e, no caso dos militares, foram dadas para os oficiais em detrimento das categorias mais baixas, que se sentiram traídas pelo pouco apreço que receberam mesmo depois de tanto apoio.
Bolsonaro soube instrumentalizar o rechaço de amplos setores da população contra as medidas duras de isolamento durante a pandemia do Covid-19, ainda que tenha promulgado a lei, ainda de fevereiro de 2020, que concedia aos poderes municipais e estaduais impor medidas de isolamento. Em 2021, quando sua equipe econômica já tinha realizado com o Congresso Nacional a Reforma da Previdência, a autonomização do Banco Central e a perda do controle da Eletrobrás, resolveu tardiamente fazer uma reforma eleitoral para adoção do voto em cédula, fazendo crer ao seus apoiadores aguerridos que iria “às últimas consequências” para a adoção da medida.
Logo depois do anúncio dos resultados eleitorais do segundo turno, reconhecido pela Câmara dos Deputados, Senado Federal e STF, Bolsonaro mergulhou em silêncio e usou seus apoiadores como massa de manobra, implicando as FFAA, ao deixar que eles se aglomerassem em frente aos quartéis e aos comandos do exército pelo país. Covardemente, ficou em silêncio e colocou os comandantes das FFAA, oficiais, sargentos e soldados sob pressão, quando poderia ter se manifestado antes dizendo que seu mandato findaria em 01 de janeiro e iria sair do país ao final, como acabou fazendo.
O Sr. Guzzo sabe bem que as FFAA não tem mandato político, não são um poder da República mas fazem parte do Executivo, obedecendo o presidente da República, e que o famoso artigo 142 da Constituição Federal não lhe permite intrometer-se no processo político. Nem mesmo para se intrometer nas ações do Judiciário após a repressão aos atos violentos do 8 de janeiro. Não é culpa da instituição FFAA se pessoas foram presas nos atos de vandalismo ou simplesmente por estarem de frente aos quartéis clamando por algum tipo de “intervenção”. Assim como não é culpa das FFAA se o governo do PT não coloca a segurança pública e o combate ao crime organizado como centro de sua atenção, relegando-as a um patamar inferior à agenda ambiental, identitária etc.
O que está no subtexto das diatribes contra as FFAA, ao partir para o questionamento do porquê mantê-las no Brasil de hoje, tendo em vista a crise de segurança, é a designação que os EUA vem tentando impor desde os anos 1980 como o Diálogo Interamericano, das FFAA dos países ibero-americanos como força com função precípua de combate ao narcotráfico. Assim, de acordo com a doutrina pensada a partir de Washington, caberia às forças dos países do continente, incluindo o Brasil, ter FFAA enxutas, sem grandes investimentos, orientada apenas para funções de vigilância de fronteiras, para enfrentamento de forças não regulares ou mesmo não militarizadas.
Nessa linha, parece totalmente desorientado quando ridiculariza uma possibilidade de ocupação ou invasão estrangeira, ao mencionar que o país não enfrentou uma desde a Guerra do Paraguai. Parece desconsiderar o acirramento da competição geopolítica na atualidade, com a eclosão do conflito entre OTAN e a Rússia, e do controle sobre matérias primas estratégicas para a “transição energética” em curso, cujo efeito direto nós aqui iremos sentir. A Amazônia não só tem a maior reserva de água doce do mundo, mas também imensas reservas minerais. Assim sendo, cabe ao Brasil cuidar da cobiça internacional pela defesa do seu território, investindo na defesa e modernizando armamentos e equipamentos.
Sr. Guzzo, o que são 120 bilhões de reais por ano para manter nossas FFAA, gastos de pessoal, equipamentos e manutenção incluídos, perto do que se paga de juros da dívida pública na economia com a maior taxa de juros reais do mundo, com a desculpa esfarrapada de “combate a inflação”¿
Assim sendo, a função das FFAA não é ser amada pela direita ou pela esquerda, por governos passageiros que vem e vão, mas se colocar como instituição de Estado para a defesa nacional, considerando o cenário internacional. A formulação de políticas, o direcionamento dos esforços e, sobretudo, a discussão sobre a questão nacional cabe à sociedade política, ainda que nossos representantes, que encabeçam as principais forças políticas do Brasil, não estejam à altura.
Talvez esse debate importante não interesse tanto à Revista “Oeste”, cujo título remete a Ocidente, do qual eles acreditam que o Brasil faz parte e que mal algum fará ao Brasil. Querem acima de tudo fazer parte dele, como puxadinho do Partido Republicano dos EUA e do trumpismo, mas o Brasil e os demais países ibero-americanos não fazem parte desse “Ocidente”, como demonstrou mesmo o cientista político Samuel Huntington em “Choque de Civilizações”. Temos origem ibérica, recebemos ondas de colonização europeia, mas não fazemos parte do Ocidente político da OTAN.
Faremos parte de um mundo multipolar, quer uns queiram ou não.