
O Ocidente está violando a lógica do multilateralismo ao impor sanções unilaterais para atingir objetivos políticos contra adversários
Por Kanwal Sibal, ex-ministro de relações exteriores indiano e ex-embaixador na Rússia entre 2004 e 2007.
O multilateralismo, já ameaçado a ponto de a Assembleia Geral da ONU dedicar sua sessão do 75º aniversário em 2020 para “reafirmar nosso compromisso coletivo” com o princípio, está enfrentando uma erosão ainda maior em consequência do colapso das relações entre a Rússia e o Ocidente e do aumento de tensões sérias entre os EUA e a China, às quais a Europa está se juntando hesitantemente.
A globalização, ancorada essencialmente no multilateralismo, está sendo revertida. Já sob estresse em decorrência da pandemia de Covid, a economia global está sob mais pressão devido à continuidade do conflito na Ucrânia, principalmente pelo uso desenfreado de sanções como instrumento político pelo Ocidente para atingir objetivos políticos contra adversários específicos. Empregadas sem preocupação com a interrupção causada nas trocas normais entre países terceiros, as sanções unilaterais violam a lógica do multilateralismo.
O G20 foi criado para reunir os países desenvolvidos e as economias emergentes a fim de abordar coletivamente as questões de crescimento global e estabilidade financeira que o grupo G7, mais restritivo, não conseguia mais resolver sozinho, após a crise financeira de 2008, provocada pela má administração do setor bancário dos EUA.
O G20 foi, de certa forma, um aceno para a multipolaridade, mas mais com a intenção de domá-la e mantê-la sob o monitoramento dos EUA.
O futuro do G20 agora é incerto. É muito improvável que as sanções do Ocidente contra a Rússia sejam suspensas em um futuro próximo. Isso significa que qualquer cooperação que tenha sido possível anteriormente entre o Ocidente e a Rússia no Conselho de Segurança da ONU em determinadas questões não será mais viável.
Com a Rússia e a China fazendo causa comum em questões fundamentais de paz e segurança global e regional, porque estão sendo tratados como adversários pelos EUA, a cooperação internacional em questões de interesse de toda a comunidade global estará seriamente prejudicada, dentro e fora da ONU.
O G20 já está sentindo o estresse das atuais tensões geopolíticas. Por exemplo, nenhuma declaração conjunta pôde ser emitida após as reuniões dos Ministros de Relações Exteriores, Finanças e Desenvolvimento do G20 sob a presidência da Índia. O Ocidente está determinado a impedir qualquer declaração conjunta, a menos que haja uma clara denúncia da intervenção militar “não provocada” da Rússia na Ucrânia e que Moscou seja responsabilizada por questões como o impacto econômico global do conflito, incluindo a escassez de alimentos que afeta os países mais necessitados.
Com o Ocidente inflexível nessa questão e a Rússia, com o apoio da China, agora não querendo aceitar nem mesmo a linguagem de compromisso da declaração conjunta do G20 em Bali e insistindo que o mandato do G20 é apenas para lidar com questões econômicas e financeiras, será surpreendente se uma declaração conjunta emergir da cúpula de Nova Délhi neste fim de semana.
Nesse caso, seria a primeira vez que o G20 não conseguiria emitir uma declaração de consenso. Caberá então à Índia emitir uma declaração do presidente que incorpore a linguagem de Bali sobre a Ucrânia, com a observação de que os parágrafos relevantes não foram aprovados pela Rússia e pela China.
Essa probabilidade é ainda mais certa agora que tanto o presidente russo Vladimir Putin quanto o presidente chinês Xi Jinping não participarão da cúpula. A ausência deles mostra como as relações internacionais se tornaram fragmentadas, a ponto de não valer a pena manter abertos os canais de comunicação entre as principais potências em um momento em que a paz e a segurança internacionais, bem como a estabilidade econômica e financeira global, estão ameaçadas.
Pode-se especular que a Rússia concluiu que, com o G7, a UE e a Austrália profundamente hostis ao país e continuando a armar a Ucrânia e a buscar sua derrota militar, e com a probabilidade de que qualquer discurso do presidente Putin na sessão plenária seria recebido com uma fuga, não seria útil para ele participar da cúpula. De qualquer forma, o diálogo no nível do presidente Putin com seus colegas chineses, sul-africanos, sauditas e turcos está sendo mantido bilateralmente. O Brasil, além disso, é membro do BRICS e a adesão da Argentina ao grupo foi aprovada.
A presença do presidente Putin teria sido um gesto positivo em relação à Índia, que não condenou a Rússia em relação à Ucrânia, apesar da pressão ocidental. O país anfitrião absorveu as críticas ocidentais por comprar petróleo russo, recusou-se a convidar o presidente ucraniano Vladimir Zelensky como convidado e deu muita importância ao sucesso de sua presidência. A ausência de Putin, no entanto, também pouparia a Índia de dores de cabeça diplomáticas ao administrar as tensões na cúpula. A delegação russa, é claro, participou plenamente das deliberações do G20 em várias áreas.
Os motivos da decisão do Presidente Xi de não comparecer são mais complexos. A China continua em um tenso impasse na fronteira com a Índia, já que as tropas de ambos os países estão se enfrentando no Himalaia e 19 rodadas de conversações militares não conseguiram neutralizar totalmente a situação. O breve intercâmbio entre o presidente Xi e o primeiro-ministro indiano Narendra Modi na cúpula do BRICS em Joanesburgo no mês passado não parece ter sido suficientemente produtivo. O Presidente Xi pode ter sentido que poderia ser ignorado na Índia. Se nenhum diálogo bilateral for realizado com a Índia, isso aprofundará as diferenças, e se um diálogo for realizado, mas a China não tiver planos para neutralizar a crise, isso também piorará a situação.
É possível que o presidente Xi ainda não esteja pronto para realizar uma reunião bilateral com o presidente dos EUA, Joe Biden, que está interessado em uma reunião, e gostaria de se fazer de difícil, esperando por mais propostas de Washington, que já enviou vários ministros de nível ministerial para a China. É possível que o presidente Xi também não queira se envolver com o presidente dos EUA em solo indiano, preferindo fazê-lo em outro lugar. Como no caso do presidente Putin, o presidente Xi também se reuniu com vários líderes não ocidentais bilateralmente ou em reuniões da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) ou do BRICS. O presidente chinês também pode, assim como seu colega russo, querer reduzir a importância do G20 como uma plataforma liderada pelo Ocidente e construir uma OCX expandida como um contrapeso multipolar a ele.
É lamentável que o G20 – que tem em sua agenda financiamento climático, energia verde, metas de desenvolvimento sustentável, comércio, questões de dívida, reformas de bancos multilaterais, reformas da ONU, segurança alimentar, saúde, desenvolvimento liderado por mulheres, criptomoeda, crimes cibernéticos, notícias falsas, terrorismo, turismo e cultura, e assim por diante, e sobre os quais há um consenso geral de opiniões – esteja sendo refém do Ocidente na questão da Ucrânia, a ponto de não permitir o surgimento de uma declaração conjunta acordada.
Em condições ideais, em todos os assuntos sobre os quais há consenso, o G20 deveria ser capaz de emitir uma declaração conjunta em nível de liderança. A questão da Ucrânia pode ser tratada adequadamente na declaração do presidente do G20. Por que jogar fora o bebê junto com a água do banho?