Rússia e Turquia constituíram os dois últimos grandes impérios da Ásia. Historicamente, foram rivais por muito tempo, mas tiveram momentos de boas relações. No cenário pós-Guerra Fria vem se aproximando, a despeito das tensões, sobretudo que vem ocorrendo na Síria. Ou de supostas escaramuças envolvendo os dois indiretamente, tal como temos observado no Conflito de Nargorno-Karabakh, agora interrompido por um cessar-fogo negociado pela Rússia.
A Rússia apoiou o Império Turco em 1832-33, quando Mehmed Ali do Egito começou a avançar na Anatólia. Agindo a mando do sultão, o czar posicionou soldados russos perto de Istambul para impedir qualquer ataque à capital otomana e, assim, ajudou a preservar o império. Vinte anos depois, os dois impérios se enfrentaram na Guerra da Crimeia (1856).
Na I Guerra Mundial (1914-18), estiveram em posições opostas e viram seus impérios ruírem no esteio do conflito. Em um período de poucos anos, o último sultão e o último czar foram depostos. Novos Estados foram fundados no lugar: a República da Turquia e a União Soviética. Assim, Mustafá Kemal e seus jovens oficiais, que fundaram a Turquia moderna, e os bolcheviques formaram uma aliança inusitada.
Sobre Kemal e o movimento que ele liderou: para nós, brasileiros, o maior paralelo pode ser encontrado em nossa História é no tenentismo. Tal movimento propôs a modernizar a Turquia, no campo econômico, social e militar, colocando-se em oposição ao regime dos sultões que vigorou nos séculos anteriores, na medida em que o Império Turco encolhia.
Tanto a Rússia como a Turquia perderam territórios com o fim da guerra. Ambos se encontraram acossados pelas potências ocidentais vencedoras. A nascente União Soviética, saída de uma guerra civil, encontrava-se isolada diplomaticamente. O Império Turco foi desfeito, com o surgimento de mandatos da França e do Reino Unido sobre, respectivamente, a Síria e o Líbano e a Palestina e a Jordânia, assim como o Reino Saudita surgiu na Península Arábica. Coube à nascente Turquia apenas a Península da Anatólia, ainda que as potências vencedoras da I Guerra ainda tentassem lhe impor um território ainda menor pelo Tratado de Sèvres (1920), que foi rejeitado por Kemal, o Ataturk, com apoio soviético.
Durante os anos 1920 e 1930, a percepção de estarem sendo ambos cercados pelo Ocidente uniu a União Soviética e a Turquia. Mas a II Guerra e o contexto da Guerra Fria que se seguiu, fez que ambos se afastassem. A Turquia passou a compor a OTAN, tornando-se, ao lado de Israel, um dos grandes aliados do Ocidente no Oriente Próximo. A localização estratégica do país, ponte entre Europa e Ásia e uma barreira natural para as repúblicas soviéticas do Cáucaso, como a Armênia, a Geórgia e o Azerbaijão, contribuiu para o pertencimento da Turquia não só para a OTAN, como também da OCDE.
O colapso da União Soviética transformou fundamentalmente a situação geopolítica da Turquia. A maior ameaça à segurança da Turquia havia se dissolvido e, pela primeira vez em séculos, a Turquia não fazia mais fronteira com a Rússia – vários Estados-tampão agora separavam os dois. Além disso, a Federação Russa tinha metade do tamanho da URSS e era menos poderosa do que sua predecessora. Gradualmente, porém, os turcos começaram a reconhecer que o fim da bipolaridade oferecia mais, e não menos, espaço para manobras diplomáticas.
Um dos exemplos mais marcantes dessa reorientação veio em março de 2002, quando o general Tuncer Kılınç, secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional da Turquia, expressou sua convicção de que a Turquia deveria se afastar do Ocidente e buscar aliados na Rússia e no Irã. Kılınç não falava como um cidadão comum, nem era uma figura isolada. Uma parte significativa do corpo de oficiais da Turquia, então os autoproclamados guardiões do kemalismo, compartilhava sua desconfiança do Ocidente, a crença de que a Turquia era excessivamente dependente do Ocidente e seu desejo de diversificar as relações da Turquia além do Ocidente.
Quando chega o século XXI, o mundo testemunha a ascensão de dois líderes fortes, cada qual em seu país: Vladimir Putin e Recep Erdogan. Putin reestrutura a Federação Russa depois do colapso soviético e os tempos de penúria de Ieltsin, enquanto que Erdogan, ligado ao conservadorismo islâmico, rompe com a hegemonia dos militares laicos pró-OTAN e afasta-se gradualmente dessas posições conquistadas desde o início da Guerra Fria.
O grande evento que vai marcar a reorientação estratégica na relação entre os dois países é a Guerra na Síria, que eclode em 2011. Os dois países se veem em posições opostas. Erdogan passa a apoiar as forças rebeldes, enquanto Putin cerra fileiras ao lado do presidente sírio Bashar Al Assad, desafiando também os Estados Unidos, Israel e diversos países árabes.
No triênio 2013-15, testemunha-se que as forças rebeldes não teriam condições de derrubar o regime sírio, ao contrário do que ocorreu em 2011 na Líbia, quando Muamar Kadafi foi arrastado nas ruas e barbaramente assassinado, com apoio da força aérea dos países da OTAN. Em 2012, Putin reassume a presidência na Rússia, depois de ficar quatro anos como primeiro-ministro de Dimitri Medvedev e parte para o socorro total a Assad.
Eis então que, em um cenário de total instabilidade no Oriente Médio e revoluções coloridas não só por lá mas também no entorno russo (Ucrânia), fatos estranhos começam a acontecer. Em novembro de 2015, a Força Aérea turca abateu um avião de ataque russo SU-24 que havia violado o espaço aéreo turco enquanto estava voando em missões de combate contra milícias apoiadas pela Turquia na Síria lutando para derrubar Bashar al-Assad. A Rússia responde com sanções.
Contudo, em junho de 2016, a Turquia publicamente se desculpa pelo incidente e concorda em pagar uma indenização a família do piloto vítima do ataque. E logo no mês seguinte, em julho, eclode uma tentativa de golpe em Ankara, capital turca, contando com a participação de caças que bombardeiam prédios públicos. Erdogan esmaga o golpe e consolida seu poder. Em agosto, faz uma visita oficial à Rússia, aonde começa a se delinear uma relação mais próxima, em que a Turquia aceita o convite de participar das negociações de paz na Síria, sob iniciativa russa. A mensagem para o mundo é clara: para a Turquia, a Rússia é uma parceira mais confiável do que o Ocidente.
Mas quando as negociações com Astana deveriam começar em dezembro de 2016, um policial turco, que estava fora de serviço, atirou no embaixador russo na Turquia, em um assassinato macabro em uma exposição de arte em Ankara. A provocação, no entanto, não conseguiu abalar a determinação de ambos de colocar de lado suas diferenças anteriores.
Mesmo assim, a Turquia tomou uma decisão que realmente preocupou o Ocidente: deixou de lado a compra de armamentos estadunidenses e adquiriu um sistema de mísseis S-400, que vem se mostrando bem superior ao sistema Patriot. O primeiro carregamento chegou à Turquia em julho de 2019, no aniversário de três anos do golpe fracassado. O momento não podia ser mais oportuno, e a cobertura comemorativa da mídia reforçou ainda mais a importância simbólica. Erdogan declarou a compra “o acordo mais significativo de nossa história”, uma declaração talvez exagerada, com certeza, mas não sem sentido.
Na verdade, o significado dessa aproximação é bastante claro: a República da Turquia, que por décadas foi um aliado constante, embora às vezes descontente, dos Estados Unidos e do Ocidente em geral, agora prefere se distanciar do Ocidente pelo bem de sua própria segurança. Embora ousada e arriscada, a compra do S-400 e a aproximação mais ampla para a Rússia não podem ser atribuídas principalmente a uma suposta postura errática de Erdogan, muito menos à sua orientação islâmica ou qualquer ideologia além do nacionalismo turco dominante. A virada para a Rússia está relacionada a as aspectos geopolíticos que unem os dois países e de acordo com os princípios fundamentais da política externa estabelecidos por Mustafa Kemal.