Por Renato Cruz Silva, da Secretaria de Inteligência e Macroestratégia, da Embrapa
A afirmativa de que a agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil é falsa, não tem base na realidade e não faz qualquer sentido. Quem o afirma é o professor Rodolfo Hoffmann, reconhecidamente um dos maiores estatísticos agrícolas do Brasil, em nota técnica publicada na revista “Segurança Alimentar e Nutricional”, da Universidade de Campinas. Segundo o professor Hoffmann anota no artigo, agricultura familiar no Brasil é claramente muito importante e tal reconhecimento “não precisa de dados fictícios”.
Conhecido por exigir absoluto rigor nos dados estatísticos, o professor Hoffmann incomodou-se com o fato de que, desde 2011, mídias do Governo, como o “Portal Brasil”, autoridades, documentos, artigos acadêmicos e até mesmo a Wikipedia passaram a repetir tal informação, sem qualquer critica ou explicação de como se chegou a essa percentagem.
Hoffmann afirma ainda que não conseguiu localizar nenhum documento que demonstrasse como se chegou a essa estimativa, o que era de se esperar, pois ela não faz qualquer sentido: “Falar em 70% dos alimentos torna necessário definir o total dos alimentos”, observa o professor, que se pergunta como se vai somar toneladas de feijão, com toneladas de óleo de soja, de sal, de açúcar ou de uva. Como se tratam de coisas completamente diferentes, diz ele, “é um absurdo somar as quantidades físicas”.
Se a afirmação fosse de que a agricultura familiar é responsável por 70% dos alimentos “produzidos” no Brasil, já seria um desafio extremamente complicado: o senso comum indica que tal frase só seria verdadeira se os agricultores familiares produzissem 70% de cada alimento, ou seja, 70% do arroz, do feijão, da carne, da batata, do óleo de soja, do leite, da laranja e assim por diante. Obviamente, não é o que ocorre. E não é um problema de grandeza ou de segmento da agricultura: pelas mesmas razões, seria igualmente sem sentido se a afirmação se referisse à agricultura não-familiar ou se a porcentagem fosse apenas 10%.
No Censo Agrícola de 2006, o IBGE se preocupou em avaliar adequadamente a participação da agricultura familiar na produção de alimentos mais comuns no Brasil. Mas, um primeiro cuidado foi definir o que é agricultura familiar, já que isto não tem uma definição universal. O IBGE usou a definição estabelecida na lei 11.326, de 2006, que considera agricultor familiar somente a quem atende, ao mesmo tempo, limites de área, de uso de mão de obra, de origem da renda familiar e de gestão da propriedade.
Em seu artigo, com base nos dados do censo agrícola, Hoffmann mostra que, em 2006, a agricultura familiar, tal como definida na lei, produziu 33% do arroz em casca, 69,6% do feijão (considerados todos os tipos), 83% da mandioca, 45,6% do milho em grão, 14% da soja, 21% do trigo e 38% do café em grão, só para citar alguns produtos.
Naquele ano, a agricultura familiar ainda produziu 57,6% do leite de vaca, 67% do leite de cabra e 16,2% dos ovos de galinha e detinha 29,7% do rebanho bovino, 51% das aves e 59% dos suínos. É uma contribuição expressiva nos cultivos e criações, mas não há como somar cabeças de gado, com litros de leite, arrobas de carne e quilos de grãos para se conhecer o todo da produção agropecuária e avaliar o percentual de contribuição de qualquer parcela dos agricultores.
A única maneira de somar produtos diferentes é considerar, em lugar do volume produzido, o valor de mercado de cada alimento produzido, o que é prática econômica aceita mundialmente. O Censo Agrícola mostrou que, em 2006, o valor anual da produção da agricultura familiar, tal como definida na lei, foi de 54,5 bilhões de reais, ou seja, 33,2% do valor total da produção agrícola brasileira (R$ 169 bilhões).
Portanto, o que se pode afirmar com certeza é que, naquele ano, a agricultura familiar foi responsável por 33,2% do valor da produção agrícola brasileira e a agricultura não-familiar foi responsável por 66,8% desse valor. Em outros anos, esses valores podem mudar.
Em 2013, a pesquisadora A. A. Kageyama e colegas, usando os dados do Censo de 2006, estimaram que a contribuição da agricultura familiar chegaria a 52% do valor da produção total. Mas, nesse cálculo consideraram agricultura familiar toda propriedade em que metade da mão de obra fosse da família dona do negócio, agregando assim o valor de produção de um número muito maior de propriedades.
Se estabelecer a participação da agricultura familiar na quantidade de alimentos “produzidos” no Brasil já foi uma tarefa complicada, afirmar que a agricultura familiar produz 70% dos alimentos “consumidos” pelos brasileiros é um desafio ainda maior, senão impossível, pois significa garantir que 70% do que cada família consome vem da agricultura familiar.
Hoffmann lembra que é preciso considerar que parte do que a agricultura familiar produz é exportada, outra parte é consumida pela própria família produtora e uma porção grande é transformada em vários produtos na indústria de alimentos, que envolve cadeias produtivas muito diversificadas. Afirmar, com segurança, que fornecem 70% do que as famílias brasileiras consomem exigiria rastrear cada alimento desde sua origem, ao longo dessas cadeias, até as residências dos consumidores.
Para avaliar essa afirmação, ele propõe um raciocínio simples, não muito rigoroso, baseado na despesa total, das famílias, com alimentos, ao longo do ano, fornecida na pesquisa de orçamentos familiares (POF) do IBGE, de 2008/2009, e na estimativa do valor da produção da agricultura familiar, estimado em 2006.
É claro que, ao comprar os alimentos num supermercado, armazém ou num restaurante, o consumidor está pagando não só o valor da produção agrícola, mas também todos os custos industriais, de transporte e de remuneração do comércio. Nesse raciocínio, Hoffmann pressupõe que toda a produção agrícola da agricultura familiar é consumida pelas famílias brasileiras (nenhuma exportação).
Assim, toma o total do valor de produção da agricultura familiar em 2006 (R$ 54,5 bilhões), corrige pela inflação até janeiro de 2009 (15%), obtendo um novo valor da produção (R$ 62,675 bilhões) e divide esse valor pelo total das despesas com alimentos das famílias brasileiras (R$ 292,6 bilhões), estimado pela POF em 2009.
Verifica assim que, naquele ano, a produção da agricultura familiar corresponderia a 21,4% do que as famílias gastam por ano com alimentos. Apesar de não ser um cálculo rigoroso, serve para mostrar que o seu valor total não se aproxima de 70% do que os brasileiros gastam com alimentos. Mas, o mais acertado é considerar a participação de cada segmento da agricultura no valor da produção agrícola.
Neto de imigrantes alemães, “que criaram seus filhos no Brasil com base na agricultura familiar”, Hoffmann assegura, no final do artigo, que não tem a menor intenção de diminuir a importância que os leitores atribuem à agricultura familiar. Mas, por essa mesma razão, não quer que narrativas com dados fictícios mascarem o seu real valor. Veja o artigo em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/san/article/view/1386.