O encalhe do cargueiro de mais de duzentas mil toneladas no Canal de Suez, Egito, parado desde o dia 23, bloqueando o acesso das demais embarcações, demonstrou ao mundo que o transporte naval está sujeito a alguns pontos de estrangulamento estratégicos, por onde passam as principais rotas do comércio mundial. O cargueiro pertence à firma taiwanesa Evergreen, fazendo o percurso Extremo Oriente – Europa, por onde passa um fluxo impressionante de mercadorias todos os dias.
O Canal de Suez é um desses pontos, pois liga o Mar Mediterrâneo – o “Mare Nostrum” dos antigos romanos – ao Oceano Índico, via Mar Vermelho. Já os antigos faraós egípcios sonhavam em ligar os dois mares por um canal, já que são separados por uma relativamente pequena faixa de terra. Quando lançou sua expedição ao Egito, há mais de duzentos anos, Napoleão idealizou a existência do canal, que permaneceu, desde então, um projeto francês.
O engenheiro francês Ferdinand de Lesseps ganhou do governante egípcio Said Pashá a permissão para construir o canal ligando os mares, com a condição de ser aberto para navios de todos os países. Assim, em 1858 foi criada a Companhia do Canal de Suez, que entrou em operação em novembro de 1869.
Naquela época, a construção do canal sofreu oposição do Império Britânico, que já controlava as principais rotas marítimas do comércio. Até a construção do Canal de Suez, o comércio entre o Oriente e o Ocidente era feito contornando o Cabo da Boa Esperança, via as rotas desbravadas pelos navegadores portugueses no século XVI. Essa foi uma das razões pela qual a França se engajou no projeto, tendo em vista a rivalidade entre os dois países, que ainda era forte em meados do século XIX. Quando a Companhia de Suez abriu sua firma, sofreu escassez de fontes de financiamento, mas logo conseguiu apoio dos Rothschilds franceses, que nela investiram.
O Egito ainda fazia parte do Império Otomano, que se retraía e entrava em decadência naquela época. Diante do sucesso da empreitada, os britânicos passaram a se interessar pelo canal, acabando por ocupar o Egito militarmente em 1882. Seis anos depois, a Convenção de Constantinopla, mantém a livre passagem em Suez, sob a tutela do Reino Unido. Com o fim do Império Otomano depois da I Guerra Mundial, os britânicos asseguraram o controle sobre o canal no Tratado Anglo-Egípcio de 1936.
A construção do Canal de Suez significou uma revolução no transporte marítimo, tendo em vista que o comércio da Europa com o Oriente era feito pela Rota do Cabo desde a época das grandes navegações.
Depois da II Guerra dois fenômenos políticos sacudiram o Oriente Médio: a criação do Estado de Israel (1948) e ascensão de Gamal Abdel Nasser ao poder no Egito (1952), pondo fim à monarquia alinhada aos britânicos. A dinâmica do poder na região foi afetada pela rivalidade entre esses dois Estados. Nasser, encarnando o nacionalismo árabe e liderando a oposição regional a Israel, resolveu ocupar militarmente o Canal de Suez em julho de 1956, nacionalizando a companhia controlada pelo Reino Unido, bloqueando o acesso a navios de bandeira israelense. A ocupação teve como resposta uma invasão de forças britânicas, francesas e israelenses.
O conflito foi resolvido com o estabelecimento da Missão de Paz da ONU no Suez, colocando a fronteira leste do Suez sob os capacetes azuis, que permaneceram lá até março de 1967, quando Nasser determinou a retirada desses. O líder egípcio pretendia engajar-se em um conflito contra Israel, mas este se antecipou e destruiu a frota de aviões egípcia antes dela decolar em seus ataques, no conflito, de junho de 1967, mais conhecido como a Guerra dos Seis Dias, que terminou com a ocupação israelense da Península do Sinai e da margem leste do Canal de Suez.
Com a morte de Nasser em 1970, sobre ao poder Anuar Sadat, mantendo, no início a política de seu antecessor, de confronto com Israel e proximidade com a União Soviética. Na Guerra do Yom Kippur (1973) lança tropas na margem leste, para, pelo Sinai, atacar Israel. Apesar dos israelenses conseguirem repelir o ataque, isso forçou-os negociar. Assim chegava ao fim a rivalidade Egito-Israel, com a assinatura de um tratado de paz de 1979, que determinou o fim da ocupação no Sinai e abertura para navios israelenses no Canal de Suez, de propriedade do Estado egípcio, mas aberto a navios de todos os países. Por lá passam os grandes petroleiros que suprem a Europa e América do Norte de petróleo e seus derivados.
Em 2014, o Presidente Al-Sisi anunciou a expansão do canal no projeto Novo Canal de Suez, com a criação de uma nova passagem paralela à antiga, assim como a ampliação e aprofundamento da mesma. O Novo Canal de Suez foi inaugurado em 2015.
Além do Canal de Suez, podemos citar outros pontos de estrangulamento das rotas marítimas, com suma importância geopolítica. Um deles é o Estreito de Málaca, na Malásia, por onde passam a rota entre o Extremo Oriente (China, Taiwan, Japão e Coreia) e o Oceano Índico, onde se situa Singapura, que deriva sua pujança econômica de sua posição estratégica. Tal rota foi aberta pelos portugueses, depois conquistada pelos holandeses, e, por fim, pelo Império Britânico, que dava a devida importância ao controle da região.
Outro ponto é o Canal do Panamá, que liga os dois principais oceanos: o Atlântico e o Pacífico. A construção do canal foi financiada pelos Estados Unidos, quando, no final do século XIX, a região por onde passa o canal ainda fazia parte da Colômbia. Assim, também financiaram uma revolta na região para criar o Estado do Panamá, com o sumo objetivo de manter o controle sobre o canal, mantendo o controle político e militar sobre o Panamá, que desde meados do século passado, conseguiu obter sobre a vizinha Colômbia. O grande temor geopolítico estadunidense é a China estabelecer controle sobre o Canal do Panamá, ainda que o gigante asiático esteja investindo em criar um novo canal de ligação entre os dois oceanos, mas passando pela Nicarágua, de volta para o controle do regime sandinista de Daniel Ortega, que se converteu em estado cliente da China.
Ultimamente, com a diminuição do gelo no Mar Ártico, a Rússia sugeriu a criação de uma nova rota Ocidente-Oriente passando pelo Ártico, a ser usada com a ajuda de navios quebra-gelo.
Empreitadas como o Canal de Suez, o Canal do Panamá e o canal que cortará a Nicarágua demandam o dispêndio de recursos, negociação política e diplomática e demonstração de força militar. O Império Britânico construiu-se com base na mais poderosa marinha de guerra da época, que lhe permitia controlar as principais rotas marítimas e assim obter receitas para manter sua economia forte. A China contemporânea, apesar de investir nos mares, busca equilibrar o jogo investindo em rotas terrestres na imensa massa de terra euroasiática, investindo na Nova Rota da Seda. Para o Brasil consolidar seu poder, urge investir em rotas terrestres de integração sul-americana, em ferrovias, hidrovias e rodovias, para fazer a plena ligação entre os dois oceanos, dentro do nosso território.