
Por Rodrigo Wentzel Vieira de Mattos.
Dizer defender a família sem um projeto de desenvolvimento adaptado às novas circunstâncias e um projeto de pleno emprego, como tínhamos até o final da década de 1970, é um falatório vazio de sentido, uma vez que desprovido de qualquer lastro na realidade.
Não se trata, porém, de mero recurso retórico a sentença proferida, mas, sim, o mais básico conceito escolástico conhecido como veritas est adaequatio rei et intelecto1. As famílias não se reestruturarão plenamente sem as condições materiais necessárias à existência e a garantia da dignidade humana. Como consequência lógica, isso não virá sem um projeto de desenvolvimento estruturado por meio do Estado. Como uma família poderá se reestruturar quando o seu filho passa fome em situação de rua? Quando uma família não consegue receber um salário digno capaz de sustentar seus filhos, garantindo-lhes a educação, segurança e acesso à saúde, indispensáveis para a boa estrutura familiar, poder-se-ia dizer que ali há o mais mínimo zelo pela dignidade da pessoa humana?
Uma família, em termos meramente ideais, pode muito bem sobreviver espiritualmente à realidade mais dura e crua, mesmo sem a condição mais elementar da existência humana como o direito à moradia, ou ao pão de cada dia. Como dizia-nos Cristo: “nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra”. Mas cabe a pergunta, baseando-nos no pensamento de Jacques Maritain, é lícito ao Estado desrespeitar a dignidade humana? Haveria justiça em negarmos o pão ao irmão que sente fome? Há humanidade sem caridade? A falta de solidariedade com o sentimento dos que sofrem as mais severas peripécias pelo neoliberalismo que tem no nacionalismo o seu principal inimigo, assola todo o país na barbárie lacerdista do anti-trabalhismo, que tem seus princípios não no comunismo, mas no Estado Social de Weimar e nos princípios da Doutrina Social da Igreja. Àqueles que ignoram o irmão que divide consigo o mesmo solo, a mesma história, a mesma herança cultural, imaginário e signos linguísticos, deixamos aqui o convite para repensar este egoísmo e passarmos a nos pensarmos enquanto brasileiros. Vejam, entregam nossas reservas de petróleo, nossa soberania monetária, destroem as nossas seguranças trabalhistas, desconstroem nossos valores integrativos, tomam nossa soberania territorial para favorecerem aqueles que nos querem submissos, mero país neoextrativista. Essa é a nação que desejam?
Como pode o pai ser um exemplo para o filho, se o Estado não cumpre a mais elementar promessa constitucional de bem-estar social que a Carta da República nos assegura? Como podemos sentirmos orgulho de nós mesmos se não nos garantem um direito humano mínimo, adquirido a duras penas desde a construção da Nova República por Getúlio Vargas? E o princípio constitucional do não retrocesso e o mínimo existencial?
Para adequarmos nosso discurso à realidade, sem a premissa invertida dos pós-estruturalistas, precisamos seguir o mais radical princípio da realidade. Sem o adequado processo de pleno emprego, com gastos públicos e projeto de Estado nacionalista e de desenvolvimento, estaremos fadados a jamais superarmos a nossa doença holandesa2 que nos assola.
Mas então, como faremos isso? Indo na contramão do que se propaga como solução na atual doutrina do Direito Financeiro e pelos economistas heterodoxos.
Nas palavras de Michel Agliettá vemos que:
“Os vínculos entre a moeda e a dívida pública são orgânicos. São os pilares da coesão das nações; é o que faz unir os membros de uma mesma sociedade. Com efeito, a dívida pública é uma dívida dos cidadãos para com a nação. Ela é a contrapartida da proteção civil e social e da produção de bens e serviços públicos que a nação enquanto coletividade fornece a seus membros. O regulamento dessa dívida é um processo que se estende no tempo entre as gerações, já que a nação é postulada perene com relação à vida de seus membros. O regulamento da dívida depende do poder de taxar que pertence ao Estado soberano. A sustentabilidade da dívida pública é, portanto, um processo de longo prazo. Quanto à moeda, é uma dívida da nação sobre ela mesma, é por isso que ela possui um poder liberatório incondicional para todo membro da sociedade que a detém (…) O Estado declara a moeda legal. Em contrapartida, o Banco Central é o credor em última instância do Estado. Isso é indispensável em razão da interdependência íntima entre risco soberano e risco bancário” (AGLIETTÁ, 2013, pp. 35-36).
É neste sentido que devemos interpretar o abuso do nosso Poder Legislativo que passou por cima de uma competência do Poder Executivo quanto à aprovação da privatização do Banco Central e que, infelizmente, o nosso STF majoritariamente aprovou3, fazendo com que o poder administrativo perca o seu fundamental controle orçamentário na consolidação da soberania monetária, cujo controle imperial sobre a própria moeda, de imprimi-la, de controlar a taxa de juros, de modo a viabilizar um Estado Empreendedor4, uma vez que “o direito de cunhar moeda sempre foi e continua a marca mais concreta e o anúncio de soberania” (DEL MAR, 1895 p. 66).
Precisamos, também, superar essa ideologia que nos fazem supor que os impostos sejam um roubo, e pensa-lo como uma garantia indispensável para o desenvolvimento nacional, uma vez que, nas palavras do economista americano L. Randall Wray:
“Dadas as preferências usuais do setor privado em relação à poupança líquida, crescimento econômico requer persistentes déficits governamentais. Além disso, o dispêndio governamental é sempre financiado por criação de moeda fiduciária – mais do que através de receitas tributárias ou vendas de títulos. Na verdade, tributos são requeridos não para financiar o dispêndio, mas, sim, para sustentar a demanda por moeda fiduciária do governo. Finalmente, vendas de títulos são usadas para drenar o excesso de reservas a fim de manter positivas as taxas de juros de empréstimo do overnight5 mais do que para financiar déficits governamentais. Isso leva a uma visão inteiramente diferente sobre o grau em que os governos são ‘formados’ a responder a pressões provenientes dos mercados internacionais” (WRAY, 2003, p. 94-95).
Pois sejamos claros, sem uma política desenvolvimento, sem uma macroeconomia científica e realista, não conseguiremos superar o que é sabido desde a guerra de independência da Holanda, pois no “curso da Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), os holandeses vieram a perceber a guerra como uma batalha não somente de soldados e armas, mas também por notações de crédito” (MACDONALD apud LACEY, p 44). Eis o fato decisivo para as guerras: além da capacidade tecnológica e militar, é necessário ter acesso ao crédito e ao financiamento, ter uma capacidade industrial não apenas bélica, mas de distribuição de suprimentos, de infraestrutura com alta tecnologia de transporte, telecomunicações, um complexo industrial de saúde, mão de obra qualificada, com capacidade de reestruturação em caso de isolamento internacional. Precisamos nos livrar dos nossos preconceitos liberais. Dinheiro não é um objeto neutro, mas um filho direto da violência. Um criador de meios de comandos6.
James Lacey tem razão quando diz que “a vitória nem sempre estará ao lado daquele com os melhores recursos materiais, embora este se mantenha frequentemente como o melhor em batalha. Em vez disso, ela se dirige para o lado com maior capacidade de mobilizar os seus recursos para um esforço de guerra decisivo” (LACEY, 2015. p. 1). Adaptando este modelo para o atual modelo das guerras híbridas, que nem sempre estão direcionados para a guerra cruenta, mas por meios escusos de espionagem, ou de modelo de dominação total, que encontramos em documentos americanos com o nome de “full-spectrum superiority” ou “full-spectrum dominance”7. Por este motivo, não podemos criar um afastamento da sociedade civil das forças armadas, mas criar uma organicidade entre a sociedade civil, as forças armadas e a aceitação dos três poderes à vontade soberana: o povo.
É neste contexto que vemos o necessário combate por meio do Estado às ONGs e ao ESG (Environmental, Social and Corporate Governance) investimentos, como fazem Putin na Rússia, Victor Orban na Hungria e Andrzej Duda na Polônia. Não é possível uma sem a outra e, para isso, um Estado forte, soberano, com força militar e potência nuclear faz-se indispensável. Com as ideologias que nos cercam, à direita e à esquerda, proponho que sejam superadas pelo ideal da nação, da pátria, da família, dos valores integrativos, ou estaremos sempre fadados a repetir os erros das últimas décadas. Pois a esquerda, identitária em sua formação, ignora e/ou apoia as ONGs em seus ataques à soberania nacional, seus valores integrativos e ao fortalecimento das forças armadas. A direita ignora a macroeconomia viável para o pleno emprego, manutenção da soberania e a política externa realista. Ao final do somatório, as duas forças se retroalimentam para o mesmo fim: destruição dos valores integrativos, da família, da soberania e do Estado. Com isso, não tenham dúvidas que poderão surgir aqueles que, com argumento ad hominem, nos acusem de comunismo (pela direita) ou usando o clássico reductio ad hitlerium nos acusando de nazistas ou fascistas (pela esquerda), ou de sermos anti-democráticos, quando estamos a defender justamente a unidade nacional e a manutenção da soberania popular. De rigor, tentarão distorcer nossas palavras para encaixá-las em espantalhos que caibam nas ideologias que eles se guiam e querem que sirva de guia para todos nós.
Por esse motivo, enfatizamos que precisamos de uma política externa independente, norteada pelo realismo político e na raison d’État (Razão de Estado). O resto é distração, é o véu das ideologias que nos impede de tornarmo-nos aquilo que estávamos em caminho de nos tornarmos no grande século XX, das décadas de 1930 até a década de 1980. Para esta finalidade, a corrente de Pensamento Econômico que melhor se adapta a este modelo é o keynesianismo. Isso não implica em esquerda ou direita. Apenas conhecimento técnico aplicado e uma vontade de fazer desta nação uma potência mundial e no fortalecimento das instituições, por meio do equilíbrio de poderes visando uma única soberania, indivisível e verdadeiramente representante do povo, aquilo que Hobbes denominou Leviatã.
Bibliografia Citada:
AGLIETTA, Michel. Zona do Euro: Qual o Futuro? São Paulo: Ideias & Letras, 2013
FERREIRA FILHO, V. D. Economia: obstáculo epistemológico: estudo das raízes políticas e religiosas do imaginário liberal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2015.
MAZZUCATO, Mariana. O Estado Empreendedor (Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. São Paulo, ed. Poerifolio-Pinhuin, 2014.
LACEY, J. Gold, Blood and Power: Finance and War Through the Ages. Carlisle Barracks, PA, USA: United States Army War College Press, Strategic Studies Institute, 2015.
WRAY, L. Randall. Trabalho e moeda hoje. Rio de Janeiro: UFRJ Contraponto, 2003.
Notas:
1 Tradução livre: “a verdade é a adequação do intelecto à coisa”. Verbete atribuído ao filósofo e principal teólogo católico santo Tomás de Aquino. Com isso, o aquinate queria nos dizer que não podemos fazer do pensamento mera tarefa abstrata, mas estarmos em constante conexão com a realidade efetiva.
2 Conceito muito discutido hoje em dia, mas que trazido ao debate público pelo economista Bresser-Pereira.
3 Aqui prestamos reverência à autoridade e damos o devido respeito a figura individual de cada um dos membros desta excelsa corte, cujos julgamentos ousamos questionar com toda a civilidade e respeito democrático ao Poder Judiciário.
4 Conceito criado por Mariana Mazzucato em seu livro de mesmo nome, O Estado Empreendedor (Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado, São Paulo, ed. Poerifolio-Pinhuin, 2014.
5 Transações entre moedas.
6 “O dinheiro, mesmo que insistam em dizer que é ‘econômico’, é filho da violência institucionalizada, nem sempre legítima, e continua a ser o principal meio de comando a ser distribuído, direito que seu portador tem de acordo com as relações aritméticas do montante que possuir, sempre sujeitas a variações por inesgotáveis motivos. Com sua aparência de objeto incruento, continua territorializado em cada país ou comunidade internacional mantendo homens e povos em relações políticas, explícitas ou não. É usado para homens e povos dominarem uns aos outros, comprometerem uns aos outros, subordinando-se às suas propriedades, aos seus imperativos, numa guerra que vai além daquela que Clausewitz dizia ser a continuação da política por outros meios” (FERREIRA FILHO, 2015, p. 384).