Por Pepe Escobar, no The Cradle
O campo de batalha está demarcado.
A lista negra oficial russa das nações hostis que aderiram às sanções inclui os EUA, a União Europeia (UE), o Canadá e, na Ásia, Japão, Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura (a única do sudeste asiático). Observe como essa “comunidade internacional” continua afundando.
O Sul Global deve estar ciente de que nenhuma nação da Ásia Ocidental, América Latina ou África se juntou à bandeira de sanções de Washington.
Moscou sequer anunciou seu pacote próprio de contra-sanções. No entanto, um decreto oficial intitulado “Sobre a Ordem Temporária de Obrigações para Certos Credores Estrangeiros”, que permite que as empresas russas liquidem suas dívidas em rublos, oferece uma dica do que está por vir.
Todas as contramedidas russas giram em torno desse novo decreto presidencial, assinado no sábado passado (5/3), que o economista Yevgeny Yushchuk define como uma “mina terrestre de retaliação nuclear”.
Funciona assim: para pagar por empréstimos obtidos de um país que sanciona mais de 10 milhões de rublos por mês, as empresas russas não precisam transferir o dinheiro. Elas pedem que um banco russo abra uma conta correspondente em rublos sob o nome do credor. Então a empresa russa transfere rublos para essa conta à taxa de câmbio atual e tudo torna-se perfeitamente legal.
Os pagamentos em moeda estrangeira só passam pelo Banco Central, caso a caso. Eles devem receber permissão especial da Comissão Governamental para o Controle de Investimentos Estrangeiros.
Isso significa na prática que a maior parte dos cerca de 478 bilhões de dólares da dívida externa russa pode “desaparecer” dos balanços dos bancos ocidentais. O equivalente em rublos será depositado em algum lugar, em bancos russos; mas os bancos ocidentais, da forma como as coisas estão, não podem ter acesso a esses rublos.
É discutível se essa estratégia simples foi o produto daqueles cérebros “anti-soberania” reunidos no Banco Central russo. É mais provável que tenha havido contribuições do influente economista Sergei Glazyev, também um ex-conselheiro do presidente russo Vladimir Putin sobre integração regional. Aqui está uma edição revisada, em inglês, de seu inovador ensaio “Sanções e Soberania” sobre a qual já falei anteriormente.
Enquanto isso, o Sberbank confirmou que emitirá seus cartões de débito/crédito intitulados “Mir” em co-autoria com a UnionPay, da China. O Alfa-Bank, o maior banco privado da Rússia, também emitirá cartões de crédito e débito UnionPay. Apesar de introduzido há apenas cinco anos, 40% dos russos já possuem um cartão Mir para uso doméstico. Agora eles também poderão usá-lo internacionalmente, através da enorme rede do UnionPay. E sem Visa e Mastercard, as comissões sobre todas as transações permanecerão na esfera Rússia-China. Isso significa desdolarização de fato.
Maduro, me dê um pouco de petróleo
As negociações das sanções do Irã em Viena podem estar chegando à última etapa – como reconheceu até mesmo o diplomata chinês Wang Qun. Mas foi o ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, quem introduziu uma nova e crucial variável nas discussões finais de Viena.
Lavrov tornou sua demanda de última hora bastante explícita: “pedimos uma garantia por escrito (…) que o atual processo [de sanções russas] desencadeado pelos Estados Unidos não prejudique de forma alguma nosso direito ao pleno e livre comércio, à cooperação econômica e de investimentos e à cooperação técnico-militar com a República Islâmica [do Irã]”.
Conforme o acordo do Plano de Ação Conjunto Global (PACG), de 2015, a Rússia recebe urânio enriquecido do Irã e o troca por bolo amarelo [composto de urânio enriquecido] e, em paralelo, está reconvertendo a usina nuclear Fordow, no Irã, num centro de pesquisa. Sem as exportações iranianas de urânio enriquecido, simplesmente não há acordo do PACG. É de admirar que o Secretário de Estado estadunidense, Antony Blinken, pareça não entender isso.
Todos em Viena, inclusive os que estão à margem, sabem que, para que todos os atores assinem o reavivamento do PACG, nenhuma nação deve ser visada individualmente em termos de comércio com o Irã. Teerã também sabe disso.
Portanto, o que está acontecendo agora é um jogo elaborado de espelhos persas, coordenado entre a diplomacia russa e iraniana. O embaixador de Moscou em Teerã, Levan Dzhagaryan, atribuiu a feroz reação a Lavrov em alguns espaços iranianos a um “mal-entendido”. Tudo isso será arrumado nos bastidores.
Um elemento extra é que, segundo uma fonte de informação do Golfo Pérsico com acesso privilegiado iraniano, Teerã pode estar vendendo até três milhões de barris de petróleo por dia desde agora, “portanto, se eles assinarem um acordo, isso não afetará em nada o fornecimento; somente eles serão mais bem pagos”.
A administração estadunidense de Joe Biden está agora absolutamente desesperada: hoje (8/3) proibiu todas as importações de petróleo e gás da Rússia, que por acaso é o segundo maior exportador de petróleo para os EUA, atrás de Canadá e à frente do México. A grande “estratégia de substituição” energética russa dos EUA é implorar por petróleo do Irã e da Venezuela.
Assim, a Casa Branca enviou uma delegação para conversar com o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, liderado por Juan González, o principal conselheiro da Casa Branca para a América Latina. A oferta dos EUA é “aliviar” as sanções contra Caracas em troca de petróleo.
O governo dos Estados Unidos passou anos – se não décadas – demolindo todas as pontes com a Venezuela e o Irã. Os EUA destruíram o Iraque e a Líbia e isolaram a Venezuela e o Irã em sua tentativa de assumir os mercados mundiais de petróleo – apenas para acabar tentando miseravelmente comprar ambos e escapar de ser esmagado pelas forças econômicas que havia desencadeado. Isso prova, mais uma vez, que os “formuladores de políticas” imperiais são completamente ignorantes.
Caracas solicitará a eliminação de todas as sanções contra a Venezuela e a devolução de todo o ouro confiscado. E parece que nada disso foi tratado com o “presidente” Juan Guaido, que desde 2019 é o único líder venezuelano “reconhecido” por Washington.
A coesão social dilacerada
Os mercados de petróleo e gás, por sua vez, estão em pânico total. Nenhum comerciante ocidental quer comprar gás russo; e isso não tem nada a ver com a empresa estatal russa de energia Gazprom, que continua a fornecer devidamente aos clientes que assinaram contratos com tarifas fixas, de US$100 a US$300; (outros estão pagando mais de US$3.000 no mercado à vista).
Os bancos europeus estão cada vez menos dispostos a conceder empréstimos para o comércio de energia com a Rússia, devido à histeria das sanções. Um forte indício que o gasoduto Nord Stream 2 entre a Rússia e a Alemanha pode estar literalmente por um fio é que o importador Wintershall-Dea anulou sua parte do financiamento, o que supõe que de fato o gasoduto não será lançado.
Todos com um cérebro na Alemanha sabem que dois terminais de gás natural liquefeito (GNL) extras – ainda a serem construídos – não serão suficientes para as necessidades de Berlim. Simplesmente não há GNL suficiente para supri-los. A Europa terá que lutar com a Ásia por quem pode pagar mais. A Ásia já venceu.
A Europa importa cerca de 400 bilhões de metros cúbicos de gás por ano, sendo a Rússia responsável por 200 bilhões desse volume. Não há como a Europa encontrar US$ 200 bilhões em qualquer outro lugar para substituir a Rússia – seja na Argélia, no Catar ou no Turcomenistão. Sem mencionar sua falta de terminais de GNL necessários.
Portanto, obviamente, o principal beneficiário de toda essa confusão serão os EUA – que poderão impor não somente seus terminais e sistemas de controle, mas também lucrar com empréstimos à UE, vendas de equipamentos e acesso pleno a toda a infra-estrutura energética do bloco europeu. Todas as instalações de GNL, dutos e armazéns serão conectados a uma única rede com uma única sala de controle: um sonho empresarial estadunidense.
A Europa ficará com uma produção de gás reduzida para sua indústria em declínio; perdas de empregos; diminuição dos padrões de qualidade de vida; aumento da pressão sobre o sistema de seguridade social; e por último, mas não menos importante, a necessidade de solicitar empréstimos extra-estadunidenses. Algumas nações voltarão ao carvão para aquecimento. O grande “Carnaval da Energia Verde” vai murchar.
E a Rússia? Como hipótese, mesmo que todas as exportações de energia dela fossem cortadas – e não o serão; seus principais clientes estão na Ásia – a Rússia não teria que usar suas reservas monetárias estrangeiras.
O ataque total russofóbico às exportações russas também visa os metais do tipo paládio – vitais para a eletrônica, dos laptops aos sistemas aeronáuticos. Os preços estão disparando. A Rússia controla 50% do mercado global desses metais. Depois há gases nobres – néon, hélio, argônio, xênon – essenciais para a produção de microchips. O titânio aumentou em 25%, e tanto a Boeing (em um terço) quanto a Airbus (em dois terços) dependem do titânio da Rússia.
Petróleo, alimentos, fertilizantes, metais estratégicos, gás neon para semicondutores: tudo queimando na fogueira da Feiticeira Rússia.
Alguns políticos ocidentais que ainda se guiam pela Realpolitik Bismarckiana já se perguntam se a proteção da energia (no caso da Europa) e os fluxos de mercadorias alvejadas pelas sanções têm mesmo tudo a ver com a proteção de um imenso esquema: o sistema de derivativos financeiros atrelados a commodities.
Afinal, se isso implodir, devido à escassez de commodities, todo o sistema financeiro ocidental explodirá. Isso sim seria uma verdadeira falha do sistema.
A questão-chave que será difícil para o Sul Global digerir é que o “Ocidente” não está cometendo suicídio. O que temos aqui, essencialmente, é os Estados Unidos destruindo deliberadamente a indústria alemã e a economia europeia – bizarramente, com a conivência dos próprios alemães e europeus.
Destruir a economia europeia significa não permitir um espaço de mercado extra para a China, e bloquear o inevitável comércio adicional que será uma consequência direta de trocas mais estreitas entre a UE e a Parceria Econômica Regional Abrangente, o maior acordo comercial do mundo.
O resultado final serão os EUA devorando as economias europeias no almoço, enquanto a China expande sua classe média para mais de 500 milhões de pessoas. A Rússia se sairá muito bem, como Glazyev descreve: soberana e autossuficiente.
O economista estadunidense Michael Hudson esboçou de forma concisa os contornos da autoimplosão imperial. Mas, o que nos parece muito mais dramático, em termos de catástrofe estratégica, é como os surdos, mudos e cegos marcham em direção a uma recessão profunda e a uma quase hiperinflação, que vai quebrar o que resta da coesão social do Ocidente. Missão cumprida.