Por Joaquim Alves, com Quantum Bird.
Em geral, na América Latina, estamos acostumados a pensar a política local em termos de correntes ideológicas, quase sempre autoproclamadas, rotuladas como ‘esquerda’, ‘direita’ e ‘centro’. Aparentemente – devido a uma série de questões que não analisaremos aqui por falta de espaço – o rearranjo acelerado do cenário geopolítico global tornou essas categorias não somente inadequadas, mas insuficientes para entender e atuar na conjuntura política da América Latina, de modo a alcançar o tão desejado bem-estar social.
De fato, a proposta do bloco Euroasiático para alcançar o desenvolvimento econômico e o bem-estar social baseia-se em outras categorias: soberania, multipolaridade e socialismo (para saber mais, acesse os artigos e entrevistas de Sergey Glazyev disponibilizados na Comunidade Saker Latinoamérica). Este último compreendido não como o socialismo doutrinário ou assistencialista – tipicamente pregado, mas raramente praticado, por setores das classes médias compradoras, e do funcionalismo público, simpatizantes de versões liberais do Marxismo – e, sim, com implementações mais pragmáticas e flexíveis como as que caracterizam o modo de produção praticado na China, por exemplo.
Neste contexto, dois países da América Latina parecem ter entendido o recado: Nicarágua e El Salvador. Esses estão trilhando caminhos diferentes da perspectiva ideológica clássica. E estão conquistando resultados comparáveis.
El Salvador
Nayib Bukele, um empresário do ramo da publicidade, entrou no governo de El Salvador em junho de 2019 pela composição chamada Gran Alianza para la Unidad Nacional (GANA), prometendo acabar com o sistema bipartidário entre o partido de direita Alianza Republicana Nacionalista (ARENA) e o partido de esquerda Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN), que havia governado o país na última década. Bukele entrou num momento onde El Salvador era considerado um dos países mais violentos do mundo. De fato, várias regiões do país são controladas por pandillas conhecidas como ‘maras’, ou seja, grupos criminosos que emergiram dos escombros da guerra civil de 1979-1992, onde órfãos de guerra em bairros pobres entram em conflitos por território para a prática da extorsão – cujo cenário remete ao da Rússia dos anos 90. Esse problema evoluiu para o engajamento desses grupos no tráfico de drogas internacional e a atuação em redes de corrupção amplas, principalmente a partir de 2000.
Bukele estabeleceu o combate à violência como um dos objetivos centrais do seu governo. O Plano de Controle Territorial (PTI) foi lançado em 2019 com o intuito de retomar as áreas controladas pelas pandillas, impulsionando a ação policial ostensiva. Foi quando ocorreu a primeira rodada de enfrentamento com as outras forças políticas do país. Em 2020, o presidente do país solicitou ao congresso a aprovação de um empréstimo para colocar a fase III do PTI em ação, basicamente visando a modernização das Forças Armadas e da Polícia Civil do país. O empréstimo de US$109 milhões deveria ser aprovado pelo congresso e seria processado via o Banco Centro-Americano de Integração Econômica (BCIE).
Após a aprovação prévia do projeto, os partidos de oposição retiraram seu apoio e começaram a colocar a necessidade de maiores estudos. Em 10 de fevereiro de 2020, Bukele ordenou ao exército que cercasse o congresso para forçar a aprovação das medidas. Após inúmeras rodadas de negociações tensas entre os poderes em torno do tema, o projeto foi aprovado em junho de 2021. Bukele desfruta de ampla popularidade junto à população, apesar de suas medidas consideradas controversas pela mídia liberal continental.
Outras medidas polêmicas do Bukele ocorreram no contexto do relacionamento tenso com o judiciário do país. De fato, aproveitando-se da maioria legislativa conquistada pelo seu partido – o Nuevas Ideas, nas eleições de 2021 – e das crescentes tensões sobre as medidas de contenção da Covid-19, o Congresso de El Salvador destituiu cinco juízes da Corte Suprema de Justicia (CSJ), alegando violação da constituição por parte dos juízes que disputaram competências exclusivas do Executivo. Apesar da celeuma internacional difundida e amplificada pela mídia ligada à forças golpistas internacionais, tais medidas garantiram a Bukele um amplo controle das instituições salvadorenhas.
Bukele também vem tentando contornar o dólar utilizando o Bitcoin como moeda principal de El Salvador, vislumbrando inclusive sua ‘mineração’ a partir da energia geotérmica, abundante no país. Essa medida causou uma forte reação contrária em setores do capitalismo ocidental, a ponto do FMI se pronunciar contra as medidas – imaginem se a moda pega?
Se essas medidas são corretas, somente o futuro vai demonstrar, mas o fato é que El Salvador se tornou a capital mundial do Bitcoin e esse movimento gerou retornos financeiros positivos. Lembre-se, caro leitor, que uma ampla fatia da renda popular em El Salvador provém de remessas de dinheiro de salvadorenhos que moram fora do país.
Nicarágua
A Nicarágua possui um histórico recente marcado por tensões geopolíticas provocadas pelos Estados Unidos. É governada desde 2007 pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), presidida por Daniel Ortega, um dos militantes da Revolução Nicaraguense e que presidiu a Junta de Gobierno de Reconstrución Nacional (1979-1985), após a queda da ditadura de Anastasio Somoza.
A Nicarágua mantém um governo soberano, com sólidas relações comerciais e políticas com países como Venezuela, Cuba, China, Rússia e Irã. E isto motiva inúmeras tentativas de desestabilização no país pelo império. De fato, partir de 2018, houve uma intensificação dos protestos iniciados após a reeleição de Ortega em 2016. A escalada de violência inédita na história republicana do país levou o governo a reagir com repressão, alegando a interferência externa nos protestos (Em McCurdy: Electoral Contras: U.S. Plotting to Sabotage Nicaraguan Democracy Yat Again).
O governo Ortega melhorou de forma substancial os indicadores sociais e econômicos via programas de expansão da educação pública e a construção de infraestrutura básica de saneamento básico, eletrificação e acesso à água potável. A Nicarágua também incentivou a produção da agricultura familiar, alcançando 90% de suficiência alimentar, bem como um aumento da oferta de empregos.
Quando os protestos escalaram em 2018, houve tentativas frustradas de diálogo com os manifestantes. A impossibilidade de diálogo e as crescentes denúncias de interferência estrangeira via entidades financiadas pela Agencia de Desenvolvimento dos Estados Unidos (USAID) e pela National Endowment for Democracy (NED), o governo reagiu, aumentando a repressão aos protestos – cada vez mais violentos – que evoluíram para tentativas de derrubar o governo.
As ações dos Estados Unidos, que promoveram sanções econômicas contra a Nicarágua, e impediram o acesso a empréstimos no Banco Mundial, no Banco Interamericano de Desenvolvimento e no FMI, reforçaram a percepção do governo Ortega quanto às atividades de interesses estrangeiros para desestabilizar o país.
Em 2021, as manifestações voltaram a se intensificar, reforçadas pelo terrorismo midiático sobre supostos erros no manejo das políticas sanitárias em torno da Covid-19, e a suposta expulsão de dissidentes. Após a identificação de opositores financiados pelos EUA, em meio ao processo eleitoral, o governo investigou e prendeu agentes ligados a interesses estrangeiros, e realizou uma campanha popular de politização da população.
Apesar de toda a pressão para desestabilização promovida pelos interesses estrangeiros, as eleições de 2021 transcorreram com relativa normalidade, levando à quarta reeleição de Ortega com mais de 70% dos votos. [A respeito dos questionamentos gerados em torno da lisura do processo eleitoral, o jornalista Ben Norton realizou uma importante análise, baseada nos relatórios de consultorias independentes de pesquisa de opinião, que confirmam a legitimidade do governo sandinista frente à população (Ben Norton. 2/3rds of Nicaraguans support leftist Sandinista Front: Poll debunks ‘dictatorship’ lie).
Emergência da multipolaridade na América Central
Comparando-se as conjunturas dos dois países, podemos explorar suas semelhanças na recuperação e ampliação da própria soberania e inferir seus ganhos bem como refletir sobre o nascente Mundo Multipolar.
De fato um aspecto importante e compartilhado pelos dois países é o combate à guerra híbrida, em ambos os casos viabilizada pela oposição, que é financiada por entidades ligadas aos Estados Unidos e segue uma agenda de desestabilização social. Destaca-se também a compreensão clara da dinâmica geopolítica contemporânea e do papel da soberania, seja em defesa dos interesses coletivos nativos, seja no estabelecimento das relações com outros Estados.
De fato, não é mera coincidência que ambos países experimentam uma dinâmica positiva de crescimento econômico, desenvolvimento social e investimentos estrangeiros em infraestrutura. El Salvador e Nicarágua cresceram cerca de 10% em 2021 – enquanto muitos países do eixo ocidental do capitalismo central estagnaram – em grande medida por causa das ações de caráter educativo e não-coercitivo, estabelecidas para o controle da Covid-19, que permitiram mitigar o impacto negativo da pandemia na economia local e até mesmo aproveitar o aquecimento do turismo internacional.
Enquanto a Nicarágua fortaleceu e ampliou suas relações com países anti-imperialistas, a exemplo do Irã e Eritreia, El Salvador, com Bukele, realizou o chamado ‘giro de 180 graus’, revertendo a posição histórica submissa do país aos ditames ianques, para iniciar uma ampla relação diplomática de caráter multipolar com China, Rússia, e mais recentemente, Turquia. El Salvador também se tornou membro do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) no fim de 2021, o que pode facilitar planos de desenvolvimento e empréstimos para construção de infraestrutura no país.
Ambos países fazem parte do BRI, a Iniciativa das novas Rotas da Seda, liderada pela China em torno da integração comercial entre os Estados via projetos de cooperação ganha-ganha em comércio e infraestrutura. No caso recente das votações em represália à Rússia na ONU, contra a operação militar especial na Ucrânia e para retirá-la da Comissão de Direitos Humanos, Nicarágua votou contra e El Salvador se absteve – nas duas situações respectivamente.
Ambos os governos combatem os quintas e os sextas colunas de seus países (leia também sobre As quinta e sexta colunas brasileiras), mitigando e desabilitando sistematicamente os mecanismos de desestabilização, como lawfare, e amplificando a solidez da estrutura do estado, combatendo corruptos e corruptores ligados a interesses estrangeiros. Apesar de serem governos com ideologias supostamente díspares, a situação pragmática e objetiva é uma posição de soberania nacional frente aos dilemas impostos tanto interna, como externamente pelos condicionantes políticos e econômicos.
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O apoio popular que ambos governos desfrutam – a popularidade gira em torno de 70% – o que é demasiado raro entre os países ocidentais e inédito, se comparado à realidade europeia, por exemplo, parece corroborar os prospectos para inserção da Nicarágua e El Salvador no arranjo de países soberanos e conectados pela lógica da cooperação ganha-ganha endossada pela nova arquitetura multipolar.
Pode-se comparar a conjuntura política da Nicarágua e El Salvador àquela dos países vassalos do Cone Sul – Argentina, Chile, Equador, Peru e Brasil – que pela escolha tácita de suas elites e classes médias compradoras, estão flertando com a falência estatal. A ausência de uma política de unidade interna, que priorize a soberania, na maior parte desses países, pode ocasionar perda completa de perspectiva sobre o fortalecimento do MERCOSUL e a articulação junto aos BRICS, que permitiria aproveitar a brecha que, segundo Glazyev, aparece raras vezes na história.