1 thought on “Desequilíbrio dos poderes: Juristocracia contra o piso nacional da Enfermagem

  1. Digo isto pois muita gente, para não confessar sua impotência, finge continuar podendo agir no interior de normas que já não existem mais. Somos confrontados, desesperadamente, ao desmoronamento de um mundo. Mas não como o gostariam aqueles que pretendem governá-lo conforme seu interesse, e sim pela passagem a um mundo mais conforme às novas exigências da sociedade. O que está chegando ao seu fim agora é a era das democracias burguesas, com seus direitos, constituições, parlamentos. Para além do aspecto jurídico – não negligenciável, é claro – o que acaba é o conjunto de pressupostos substanciais deste mundo. Que aliás começaram a colapsar com a ideia de uma terceira guerra mundial e com os totalitarismos tirânicos e democráticos.
    Apenas para tentar medir a amplitude dessa mudança. Hoje, no país em que vivo, as leis em vigor relativas aos que se chama de “no-vax” [contrários à obrigatoriedade da vacina) são dez vezes mais repressivas que as leis fascistas de 1938. Também lembro que no momento de sua instalação na Itália, o fascismo deixou relativamente poucas vítimas, ao passo que as políticas instauradas inescrupulosamente pelos nossos governantes causaram a morte de milhares de pessoas. O operador que tornou possível essa intervenção foi, como é evidente, a longa indiferença entre o direito e a política, que equivale ao estado de urgência.
    Há quase vinte anos, em um livro onde tentava fornecer uma teoria do estado de exceção, eu constatava que o estado de exceção estava se tornando o sistema normal de governança.
    Como vocês sabem, o estado de exceção é um estado de suspensão da lei; por conseguinte, um estado “sem lei”, porém incluído na ordem jurídica. Do ponto de vista técnico, foi definida uma separação entre a força da lei e a lei. Com o estado de exceção, de um lado a lei está teoricamente em vigor, mas ela não tem força, ela não se aplica, ela é suspensa; e de outro lado, disposições e medidas que não têm valor de lei, adquirem força de lei. Poderíamos dizer, no limite, que o que está em jogo no estado de exceção é uma força de lei flutuante, sem a lei.
    Seja como se defina esta situação, que se considere o estado de exceção como anterior à ordem jurídica ou ao contrário, exterior a esta ordem, o que temos é uma espécie de eclipse da lei no sentido em que se a conhecia antes, e na qual – como num eclipse astronômico – a lei subsiste mas não irradia sua luz. O paradigma da lei é substituído pelo das cláusulas e das fórmulas vagas tais como estado de necessidade, segurança, ordem ou saúde pública, que sendo indeterminados, precisam que alguém intervenha para os determinar. Já não lidamos com uma lei ou constituição, mas com uma força de lei flutuante que pode ser assumida, como o vemos hoje, por comissões, indivíduos, médicos, especialistas totalmente estrangeiros à ordem jurídica.
    Creio que nos encontramos aqui diante de algo da ordem do que Ernst Fränkel, num livro de 1941 em que tentava explicar a estrutura do Estado nazista, tinha nomeado “Estado dual”. O “Estado dual” é um Estado normativo, um Estado fundado na lei, ao qual se junta um “Estado discricionário”, um Estado das medidas de urgência, através das quais se exerce o governo dos homens e das coisas. Uma frase de Fränkel em seu livro é significativa: “Para sua salvação, o capitalismo alemão precisava não de um Estado unitário, mas de um Estado duplo, “arbitrário” na dimensão política e “racional” na dimensão econômica”.
    É na descendência desse “Estado dual” que devemos situar o fenômeno cuja importância não poderia ser subestimada, e que diz respeito a uma verdadeira mudança na figura mesma do Estado. Refiro-me ao que os politólogos americanos chamam de “Estado administrativo” e que encontrou num livro recente sua teorização. Trata-se de um modelo de Estado no qual o exercício do governo extrapola a divisão tradicional entre os poderes constitucionais, legislativos, executivos e judiciários. E agencias não previstas na constituição exercem, em nome da administração e de maneira discricionária, funções e poderes que eram atribuição dos três sujeitos constitucionais competentes.
    Trata-se de uma espécie de Leviatã administrativo. Um Leviatã puramente administrativo que supostamente age no interesse da coletividade, mesmo transgredindo o que está prescrito na Constituição, com o objetivo de assegurar e guiar não a livre escolha dos cidadãos, mas o que os teóricos chamam de navegabilidade, isto é, na realidade, a governabilidade segundo sua escolha.
    Parece-me que é o que acontece hoje, quando vemos os poderes decisórios exercidos – ao menos é o caso da Itália – por comissões, sujeitos, médicos, especialistas e economistas totalmente exteriores aos poderes constituídos.
    Através desses procedimentos factuais, a constituição é alterada de modo muito mais substancial do que quando isso ocorre através dos poderes de revisão previstos pelos textos da constituição, até ela se tornar, como o dizia outrora um discípulo de Marx, “um pedaço de papel”,. É bem significativo que tais transformações, através desse modelo que tentei mostrar, obedecem à estrutura dual do governo nazista. Talvez este seja agora o conceito mesmo de governo – de uma política “cibernética” do governo – que hoje cabe colocar em xeque.
    Disseram que o Estado moderno vive de pressupostos que ele não é capaz de garantir. É possível que a situação que tentei descrever seja a forma pela qual essa ausência de garantias atinge sua massa crítica e o Estado moderno renuncia ao que era evidente, a saber, a sua capacidade de garantir seus pressupostos. Esta história chegou ao seu fim – e é este fim que estamos vivendo agora.
    Creio que toda a discussão sobre o que podemos e devemos fazer deve partir hoje dessa constatação, de que a civilização na qual vivemos colapsou – uma sociedade baseada na finança doravante fez bancarrota. Que nossa cultura tenha estado na borda de uma bancarrota geral era evidente há décadas e os espíritos mais lúcidos do século XX o diagnosticaram sem reserva.
    Não consigo esquecer que quando eu era bem mais jovem, Pier Paolo Pasolini e Elsa Morante, que eu frequentava nos anos 60, denunciavam a inumanidade e a barbárie que eles viam crescer em torno deles. Vistos de hoje, aqueles tempos nos parecem muito melhores que o nosso. Em todo caso, foi-nos reservada hoje a experiência nada agradável, porém mais verdadeira que a precedente, de não mais nos encontrarmos na margem, porém mergulhados nessa bancarrota, intelectual, ética, religiosa, jurídica, política, econômica, na forma extrema que ela tomou, e que é exatamente isto: o estado de exceção no lugar da lei, a informação no lugar da verdade, a saúde no lugar da salvação, a medicina no lugar da religião, a técnica no lugar da política.
    Certamente, pode-se dizer que uma sociedade em bancarrota já não está viva. Pode ocorrer que as potências às quais somos confrontados hoje estejam espiritualmente mortas, mas combater um adversário morto não é mais fácil do que combater um adversário vivo. Ao contrário, pode ser uma tarefa mais difícil.
    Os seres humanos não podem viver sem atribuir a suas vidas razões e justificativas, tais como o fizeram ao longo do tempo, através da religião, dos mitos, crenças políticas, filosofias ou teorias de todo gênero. Tais justificativas, ao menos na parcela da humanidade mais rica e tecnológica, hoje parecem ter despencado. Pela primeira vez, talvez, os homens se encontrem reduzidos à sua pura sobrevivência biológica, que eles parecem incapazes de aceitar.
    Só isso pode explicar por que, em vez de assumir o simples fato de viver uns ao lado dos outros, escolheu-se instaurar um implacável terror sanitário, no qual a vida, sem justificativa ideal, é punida a cada instante por uma doença e pela morte.
    O que fazer numa tal situação?
    No plano individual, é claro, é preciso continuar na medida do possível a fazer bem o que buscou-se fazer bem antes, mesmo se já não parece haver motivo algum para o fazer. Talvez justamente porque não há mais motivo, é preciso continuar.
    Contudo, não penso que isso seja suficiente.
    Em um texto que não podemos deixar de sentir próximo de nós, já que se intitula Homens em tempos sombrios, Hanna Arendt se perguntava: “Em que medida continuamos comprometidos com o mundo e com a esfera pública, mesmo quando dela fomos expulsos?
    É o que aconteceu com os judeus: “ tivemos que nos retirar”, diziam aqueles que tinham escolhido o que na Alemanha da época era designado com a expressão paradoxal de “imigração interna”. Nós nos encontramos nesse estado, expulsos ou condenados a uma imigração interna.
    Nesse texto Arendt indicava “a amizade” como o possível fundamento para uma política em tempos sombrios. Creio que a indicação é justa. Com a condição de lembrar que a amizade, isto é, o experimentar uma alteridade no fato mesmo de existir, seja considerada como uma espécie de mínimo político. Um limiar que ao mesmo tempo une e separa o indivíduo e a comunidade. Ou seja, contanto que nos lembremos que se trata nada menos do que tentar constituir por toda parte uma comunidade na sociedade. É preciso tentar criar comunidades no interior da sociedade. Ou seja, face à despolitização crescente dos indivíduos, reencontrar na amizade os princípios radicais de uma politização renovada.
    Digo isto sem renunciar à lucidez nem à esperança.
    Se as potências que governam o mundo decidiram recorrer a medidas e dispositivos tão extremos quanto a biossegurança e o terror sanitário é porque temiam não ter outra alternativa para sobreviver. Se as pessoas aceitaram essas medidas é porque elas também sabiam, num certo sentido, que o mundo em que tinham vivido até então não podia continuar.
    Não lamentamos que este mundo tenha acabado. Não temos nostalgia alguma pela ideia do humano e do divino que as ondas implacáveis do tempo apagam como um rosto de areia nas margens da História. Mas de maneira igualmente decidida, recusamos a vida nua, muda e sem rosto e a religião da saúde que o governo nos propõe.

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