
Nicolas Maduro chegou ao Brasil na noite de domingo, para depois se reunir com Lula na segunda e posteriormente participar da reunião de cúpula dos países sul-americanos. À reunião de segunda, seguiu-se uma coletiva de imprensa dos dois presidentes.
Com esse gesto, Lula suspendeu a política de “cordão sanitário” imposta à Venezuela desde o agravamento da crise venezuelana, ocorrida por volta de 2015. Em função de problemas internos, desencadeados com a sucessão de Hugo Chávez para Maduro, o país se tornou alvo de diversas sanções impostas pelos EUA e pela União Europeia. As relações próximas que a Venezuela tinha com o Brasil durante os governos do PT desandaram com o Governo Temer e chegaram ao ponto de ruptura com o Bolsonaro, quando o Brasil embarcou na aventura, bancada pela OTAN, de reconhecer o presidente da Assembleia do país, Juan Guaidó, como “presidente legítimo” da Venezuela. O governo Bolsonaro chegou mesmo a expulsar a delegação venezuelana em Brasília, substituindo-a pela delegação “fake” de Guaidó, com a publicação de uma portaria proibindo a entrada do presidente Maduro no nosso território.
Tal medida extrema foi feita para agradar o público interno, aprisionado na visão dicotômica da Guerra Fria, e também o governo dos EUA. De fato, o governo Obama lançou a ofensiva contra a Venezuela, trabalhando para o seu isolamento diplomático, ao qual se seguiu a política de confrontação do governo Trump. Durante este período, o governo dos EUA chegou mesmo a cogitar uma ação militar contra a Venezuela, em que até setores do governo Bolsonaro tentaram se imiscuir, sendo dissuadidos sabiamente pelo setor militar do então governo brasileiro. Sem levar a cabo essa medida, vinculou o governo venezuelano ao narcotráfico, o que suscitou um mandado de prisão contra o presidente Maduro.
No entanto, o fundamento da rivalidade contra a Venezuela são as relações próximas que o então presidente Chávez desenvolveu com a Rússia, principalmente no fim de sua presidência. Possuidor hoje de cerca de 20% das reservas mundiais de petróleo e historicamente muito vinculado aos EUA, Chávez representou uma ruptura na política do país, chegando ao poder, em 1998, quando os preços do petróleo se encontravam em seus níveis mais baixos no período recente da História, quando o sistema político venezuelano ruiu, tendo chegado à presidência derrotando uma ex-miss e após sair da cadeia, preso por tentar um golpe de Estado em meio a uma grave crise social.
A crise foi desencadeada pelo chamado “Caracazo”, quando, em fevereiro de 1989, o governo venezuelano abriu fogo contra a própria população, quando a Venezuela não enfrentava sanções, mas o seu “equivalente” nos anos 1980: as medidas de austeridade e ingerência do FMI, que sucederam as crises da dívida externa dos países ibero-americanos – incluindo o Brasil.
Logo nos primeiros anos de seu mandato, Chávez sofreu uma tentativa de golpe, sustado por uma forte reação popular, conforme demonstrado no documentário “A Revolução Não Será Televisionada”. Com a derrota do golpe, em abril de 2002, começou o êxodo de venezuelanos para os EUA, sobretudo a Flórida, formando-se lá, com setores envolvidos no golpe abortado ou não, uma oposição ao governo.
Voltando aos dias de hoje, a Venezuela manteve seu regime bolivariano iniciado com Chávez, que conseguiu emplacar uma nova constituição e reformar à sua maneira as instituições do país, incluindo uma ampla reforma do Judiciário. Chávez tentou lançar seu projeto de “Socialismo do Século XXI” em cooperação com Cuba, nos últimos anos da presidência de Fidel Castro, mas falhou em utilizar a renda petroleira para diversificar a economia do país, pois esta renda foi útil para financiar programas sociais, mas não impediu que a catástrofe econômica – e também humanitária – se abatesse sobre o país quando começou a ser sancionado.
Nesse sentido, Lula não deixa de ter razão quando disse, na coletiva de segunda, que as sanções contra a Venezuela tiveram efeitos piores do que uma guerra.
Diante da ameaça colocada pelos EUA, coube a Chávez e Maduro recorrer à cooperação militar com a Rússia, na compra de armamentos e até mesmo no envio de tropas. Quando Trump ameaçou invadir a Venezuela no início de 2019, a Rússia reforçou o apoio e conseguiu dissuadi-los. Diante da guerra na Ucrânia, o governo Biden distendeu as sanções, dando um respiro à Venezuela.
Isso posto, devemos ter em mente que a política de “cordão sanitário” não interessa ao Brasil e aos demais países sul-americanos. Se a Venezuela tem um quinto das reservas conhecidas de petróleo do mundo, também possui uma população de 28 milhões de habitantes. Além disso, antes da crise que se abateu na década passada, a Venezuela é historicamente um grande importador de produtos brasileiros. Por seu turno, a dívida de 1,5 bilhão de dólares que tem com o Brasil pode ser saldada, utilizando a renda do petróleo.
Ao Brasil interessa uma política de integração física da América do Sul, utilizando os recursos naturais para alavancar o continente como um bloco econômico, que teria a liderança natural do nosso país. Cercado pelos dois maiores oceanos e ligada à América Central pelo istmo do Panamá, a América do Sul tem todos os recursos naturais necessários para o desenvolvimento econômico e para a prosperidade dos seus habitantes: petróleo, águas (duas imensas bacias hidrográficas e aquíferos), minérios, terras raras etc, mais uma diversidade climática que permite tanto culturas tropicais como de climas temperados. Nesse sentido, não há razão para excluir a Venezuela desse bloco em formação.
Além disso, a integração continental seria o instrumento para que o Brasil concretizasse um objetivo histórico de obter uma ligação ao Pacífico, o que significaria um acesso mais fácil à China.
Nesse sentido, os impedimentos à integração não se dão por motivos de ordem geográfica ou por conflitos territoriais instransponíveis, mas em problemas com origem em questões extracontinentais que são incorporados à dinâmica política dos países do entorno.