Com o plebiscito na Venezuela e as medidas proclamadas por Nicolas Maduro, a Venezuela vai deixando claro suas intenções no Essequibo, território que hoje faz parte da Guiana.
A reclamação venezuelana sobre o Essequibo remonta ao século XIX, quando o Reino Unido passou a ocupar uma região, pouco povoada – e ainda é até hoje, que fazia parte da Venezuela. Diante da contestação de ambos os lados sobre os limites entre a Venezuela e a Guiana Inglesa, as partes concordaram em levar o caso a arbitragem internacional, que por resultado passou a região de Essequibo ao Reino Unido.
De qualquer forma, a Venezuela nunca aceitou o resultado da arbitragem e suspeitava de fraude, o que conseguiu comprovar na ONU, na década de 1960. Contudo, alguns anos depois a Guiana foi tornada independente, mas o pleito continuou. Durante a Guerra Fria, enquanto a Venezuela se alinhava aos Estados Unidos, Cuba mantinha sua garantia “antiimperialista” de zelar pela causa da Guaina diante da ameaça do vizinho maior – em um sistema de alianças bem diferente do de hoje.
A questão do Essequibo não era uma causa de um determinado grupo político, mas uma pauta nacional, que unia esquerda e direita.
Se bem que o pleito venezuelano sobre o Essequibo – agora renomeado pelo atual governo como região da Guiana Essequiba, a ser incorporada à República Bolivariana – seja antigo, cabe entender por que razões por que somente agora se empenhou pela retomada do território.
Na verdade, o pleito foi retomado em meados da década passada, no momento que coincidiu com as primeiras descobertas de petróleo offshore no litoral da Guiana. A Exxon abocanhou a exploração, que tem se mostrado uma das mais promissoras fronteiras de extração do “ouro negro” nos últimos anos, malgrado toda a retórica global sobre “transição energética” que ganhou corpo no mesmo período. Desde então, a Venezuela tem sofrido bastante com as sanções impostas pelos EUA e pela União Europeia, desde quando o ex-presidente Barack Obama apontou o país sul-americano como “ameaça aos Estados Unidos”. Em paralelo a isso, até afastada do Mercosul a Venezuela foi por decisão de seus membros.
A tensão entre a Venezuela e os EUA alcançou seu ponto máximo durante o Governo Trump. No começo de 2019, logo nos primeiros meses da presidência de Bolsonaro, falava-se mesmo na possibilidade de uma ação militar estadunidense, respaldada pelo Brasil, contra o governo de Maduro. Essa possibilidade foi totalmente afastada quando membros do alto comando das FFAA se mostraram contrários à ação e pela manifestação de apoio da Rússia ao regime bolivariano. Ainda que hoje, em seu habitual tom jocoso, Trump possa dizer que se tivesse ganhado a reeleição teria “invadido a Venezuela e tomado todo seu petróleo”.
Como consequência da eclosão da guerra na Ucrânia, as tensões entre Venezuela e EUA diminuíram, e recentemente o Governo Biden vem procurando um alívio nas sanções impostas ao país sul-americano, permitindo maiores exportações de petróleo. Ao mesmo tempo, na medida em que a Guiana foi multiplicando suas exportações de petróleo, os EUA aumentaram sua presença neste país, culminando com a proposta de uma instalação de uma base militar.
Em boa parte das análises que estão sendo feitas sobre a tensão na Guiana, o fator Rússia pouco está sendo levado em conta. Na medida em que o cerco se estendeu à Venezuela nos últimos dez anos, mais e mais Maduro vem se aproximando de Putin, a quem deve retribuir o apoio com mais uma breve visita diplomática. Na Venezuela, a Rússia tem o seu maior aliado no continente, junto com Cuba e a Nicarágua, e apenas podemos especular sobre o grau de assistência militar que existe entre os dois países, além do fornecimento de armamentos como caças Sukhoi.
Conforme vem sendo demonstrado na Ucrânia, a Rússia possui o fino do armamento militar em termos de caças e mísseis, além do aparato de guerra eletrônica. Caso coloque uma amostra de seu aparato militar à disposição da Venezuela, em caso de ocupação de Essequibo e posterior resposta militar dos EUA, pode tornar as coisas mais difíceis para os norte-americanos. Isto considerando a insistência do Governo Biden em manter a inútil assistência, em termos militares, ao regime de Zelesnky, ao que se soma a presença militar no Mediterrâneo, supostamente como força dissuasória contra possíveis investidas do Hezbollah e outras forças antagonistas a Israel no Oriente Médio.
Ou seja, o possível estabelecimento de um cenário de guerra na Guiana poderia assumir a forma de um novo front de batalha da Terceira Guerra Mundial (EUA e OTAN de um lado; Rússia e o seus, de outro), que eclodiu com o conflito armado na Ucrânia e parece se estender até o Oriente Médio. Com o ataque do Hamas a Israel do 7 de outubro, a já combalida Ucrânia passou ganhar menos atenção dos EUA e parceiros da OTAN, agora preocupados com a situação israelense de ter que enfrentar uma ocupação em Gaza minada por ataques de guerrilha, com a permanente ameaça do Hezbollah do Líbano entrar no conflito pelo norte. Diante de um avanço venezuelano na pouco habitada região de Essequibo, os EUA teriam facilidades logísticas em prestar apoio às minúsculas forças guianeses, mas estariam desgastados demais para encarar um confronto de maior duração, com reservas de munições mais escassas, a não ser que optem pelo uso de armas de maior destruição contra a Venezuela. Isto se esta não tiver sistemas de defesa russos para protegê-la.
Neste ponto, há de se ressaltar que as FFAA bolivarianas são compostas não só pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, mas por milícias mobilizadas, que poderiam ser usadas como força de ocupação auxiliares, capazes de serem mobilizadas em operações de guerrilha de selva, nas matas da Guiana Essequiba. Região de floresta tropical com escassez de vias, mas que podem ser ocupadas por forças terrestres mais leves.
No cenário global, outro ator que não pode ser menosprezado é a China. Na corrida pelo petróleo na Guiana, a estatal CNOOC entrou como sócia minoritária no empreendimento da Exxon, o que a aproximou do governo de Georgetown, ainda que permaneça como o maior credor da Venezuela, asfixiada economicamente e assolada pela hiperinflação. Uma posição mais dura de Pequim seria suficiente para fazer Maduro repensar os custos de uma ocupação do Essequibo, mas, no entanto, não é isso que parece estar ocorrendo.
Pelo lado brasileiro, parece que o Governo Lula, tão interessado na agenda ambiental e nas conferências do clima, foi pego de surpresa pelos acontecimentos, apesar de o tema estar no radar dos analistas de política internacional. Nesse sentido, não há muito que fazer a não ser reforçar as fronteiras em Roraima e tornar mais robusta a presença de tropas na Calha Norte como força dissuasória, caso forças venezuelanas procurem entrar em território brasileiro para chegar à Guiana.
Caso o Brasil concedesse mais prioridade à Defesa e a uma estratégia de ocupação e desenvolvimento da Região Norte, o país poderia até mesmo tornar nulas qualquer possibilidade de conflito colocando uma presença militar que dissuadisse qualquer tentativa de ocupação da Venezuela, garantindo a integridade territorial guianense. Dessa forma, poderia se colocar como liderança e árbitro da questão do Essequibo, quando, na verdade, há sérias dúvidas se hoje o Brasil teria condições de partir para um enfrentamento contra a Venezuela, considerando todas as dificuldades logísticas que teríamos para enviar tropas e armamentos por áreas de difícil acesso, com muitas matas e poucas estradas. Áreas onde há, historicamente, impedimentos para a construção de infraestrutura de ordem legal e política, pelo lobby de ongs e outros organismos, em nome da preservação ambiental e dos povos indígenas.
Findo quase um ano de Governo Lula, o presidente em seu terceiro mandato parece encontrar um grande desafio na sua política sul-americana com a questão do Essequibo.