Por Raphael Machado.
Falar que o Haiti está no caos não nos informa nada de novo. Novidade seria falar em períodos de paz, estabilidade e prosperidade no país (e houve alguns). De fato, o caos e a guerra civil parecem tão endêmicos no Haiti ao longo de sua história que somos forçados a refletir com um pouco mais de cautela.
E cautela porque particularmente no caso do Haiti é muito comum querer resumir os problemas do país a algum fator único qualquer, supostamente explicaria tudo. Esse tipo de atitude é típica da mentalidade juvenil contemporânea que a tudo pretende reduzir para fins de facilidade explicativa e memetização – uma característica óbvia da geração menos atenta e mais desmemoriada da história.
O Haiti padece de um conjunto de problemas endógenos (de origem interna) e exógenos (de origem externa).
Começando pelos problemas endógenos, a colonização francesa em geral foi simplesmente um fracasso. A realidade é que a França começou tarde o seu impulso americano e nunca esteve realmente interessada nele. Não havia qualquer projeto civilizacional para as Américas. Havia menos projeto até que no caso anglo-saxão ou holandês. O único interesse era o lucro comercial rápido. A coroa francesa, ademais, em vez de facilitar a ida de colonos interessados em se fixar nas Américas dificultava o processo, exigindo um sem número de critérios de qualificação, inclusive aval do padre da paróquia de origem do emigrante. A França, ademais, em todo esse período sempre esteve mais preocupada com as guerras continentais europeias do que com qualquer outra coisa e as suas colônias (mesmo o Haiti, a mais lucrativa de todas) simplesmente não ocupavam muito a mente da corte.
Os franceses, de fato, se miscigenavam com índios e negros, mas se a miscigenação na América Espanhola foi um fator de integração, na América Francesa não diminuiu a exclusão e, portanto, serviu apenas para alimentar o ressentimento. O tratamento com os escravos era particularmente duro, mais do que em outras colônias. E os mulatos haitianos eram livres, mas eram obrigados a servir na milícia sem receber pagamento e estavam excluídos de todos os cargos públicos.
De modo que o contexto de enfraquecimento momentâneo da França durante o caos da Revolução Francesa, e o próprio exemplo revolucionário, tornaram inevitável uma revolução no Haiti. O problema é que a falta de projeto civilizatório, a falta de integração social, o ressentimento acumulado e, também, o fermento espiritual do vodu, transformaram o processo revolucionário haitiano em um processo de autocanibalização permanente.
Os apologistas da Revolução Haitiana usualmente varrem para debaixo do tapete o fato de que o processo culmina no genocídio branco na ex-colônia francesa. Cada homem, mulher e criança branca, de todas as classes sociais e de todas as afiliações políticas (inclusive abolicionistas e apoiadores da revolução) foi assassinada, com a exceção de soldados poloneses que desertaram do serviço francês e alguns comerciantes alemães e estadunidenses. O país logo mergulhou em conflitos internos que colocaram negros e mulatos em campos opostos, com os negros assassinando boa parte dos mulatos do Haiti.
Depois disso o país se fragmentou em 2 metades, logo após o assassinato do seu primeiro Presidente-Imperador. O país é reunificado e, em seguida, invade a região onde hoje é a República Dominicana. Mas tenta-se impor à parte outrora espanhola um regime mais duro e repressivo do que no próprio Haiti, e após 20 anos os dominicanos expulsam os haitianos. A partir de então e aproximadamente até o Presidente-Xamã “Papa Doc”, o país viveu em um estado quase permanente de guerra civil, com boa parte dos seus presidentes tendo sido depostos ou assassinados.
Veja-se, portanto, que trata-se aí de um problema que possui raízes profundas e que deriva de uma histórica ausência de projeto consolidador e estabilizador apto a efetivamente “formar” um espírito cívico haitiano que una o país para além dos sectarismos.
Para além disso é importante ressaltar o papel de empresários haitianos no narcotráfico. O vínculo entre a oligarquia haitiana, as gangues e o narcotráfico internacional é direta e foi o que resultou, inclusive, no recente assassinato do Presidente Jovenel Moïse, com empresários haitianos encomendando na Flórida o assassinato do Chefe de Estado pelas mãos de mercenários colombianos. Interessantemente, o próprio homem mais rico do Haiti, Gilbert Gigio (que, aliás, não pertence à população afro-haitiana, sendo inclusive cônsul de Israel na ilha), tem estado envolvido no tráfico de armas e no financiamento de gangues, além de ter sido parceiro de negócios de Jeffrey Epstein e frequentador de sua Ilha.
Naturalmente, poderíamos adentrar aqui no papel histórico da espiritualidade afro-haitiana nas questões políticas. A Revolução Haitiana nasce propriamente de forma ritualística, com um culto de vodu, e o vodu permeia todos os eventos históricos haitianos. O problema é que essa mistura entre vodu e política raramente serviu para ajudar a estabilizar o país. Ao contrário, a dimensão profundamente telúrica e brutal dessa forma de xamanismo usualmente serviu para alimentar ritualisticamente a violência dos conflitos civis e das ditaduras como a de Duvalier (que se retratava como o próprio Barão Samaedi) no século XX.
Sem estabilidade e sem projeto, o país simplesmente não conseguiu desenvolver suficientemente qualquer infraestrutura ou serviço público e a realidade histórica é de um país fundamentalmente “improvisado”, uma das manifestações politeicas mais próximas do que se poderia considerar um “anarcocapitalismo”.
Em um sentido exógeno, devemos ressaltar que 20 anos após a sua Independência, o Haiti aceitou pagar à França uma dívida de 150 milhões de francos, o que só conseguiu fazer em 1947, e após incontáveis empréstimos bancários contraídos ao longo desse período. O genocídio implementado pelos revolucionários, por sua vez, isolou o país das relações pan-americanas de imediato, o que naturalmente foi impulsionado pelos EUA (por causa do temor de revoltas de escravos), mas com a concordância de boa parte dos países ibero-americanos.
Em 1915, então, os EUA invadiram o Haiti a pedido do National City Bank que estava já há mais de 10 anos engajado já em uma guerra econômica para assumir o controle das finanças do país, boa parte das quais era voltada para o pagamento de juros de dívidas para com os EUA e a França. A invasão, que usou como desculpa a instabilidade haitiana e o mais recente assassinato de um presidente do país, basicamente resultou em uma “privatização” do Haiti para os interesses bancários estadunidenses. Um sistema de trabalho forçado foi implementado pelo regime militar ianque e o sistema era tão rígido que levou à morte de mais de 5 mil trabalhadores em 20 anos.
A repressão neoescravagista da ocupação ianque logo levou à ditadura de “Papa Doc”, o Presidente-Xamã que se acreditava o Barão Samedi, desenvolveu um culto de personalidade e tinha como milícia pessoal os “Tonton Macoute” (batizado conforme o análogo haitiano do bicho-papão). Papa Doc não era apoiado inicialmente pelos EUA, mas passou a ser, por assim dizer, “testa-de-ferro” dos EUA após a Revolução Cubana. Desnecessário dizer, o governo de Papa Doc tinha certa popularidade no meio rural por causa de seus laços mágicos com o “Haiti Profundo”, por assim dizer, que sempre teve uma dimensão caótica e violenta, mas em um sentido mais prático, a corrupção, a ineficiência e a criminalidade eram endêmicas. O Estado, o empresariado, o crime organizado e o ocultismo eram um continuum.
O Haiti, que após esse período ditatorial viu uma sucessão de efêmeros presidentes, só voltou a ver um pouco de estabilidade com Jean-Bertrand Aristide, especialmente em seu mandato no início do novo milênio, com ele engatando acordos tanto com o Ocidente como com países contra-hegemônicos ou não alinhados. Mas esses laços ocidentais, que incluíram o FMI, levaram inevitavelmente à deposição de Aristide por um grupo de mercenários teleguiado pelos EUA.
Poderíamos aqui, também, mencionar missões militares diversas nos anos 90 e Operação MINUSTAH, na qual o Brasil participou, que simplesmente não conseguiram alterar significativamente a realidade haitiana.
O caso recente da queda de Moïse tem as suas semelhanças com o de Aristide. O atual presidente do Haiti, Ariel Henry, no poder desde a morte de Moïse simplesmente se recusa a aceitar eleições em meio à violência e busca uma intervenção militar africano-caribenha em seu país.
E depois de tudo isso que eu comentei aqui é difícil enxergar alguma solução para o Haiti que não envolva algum grau de colaboração externa e, sinceramente, uma mão-de-ferro patriótica. Essa semana, Nayib Bukele se ofereceu para liderar uma intervenção militar no Haiti e independentemente do seu envolvimento ou não é difícil enxergar para o Haiti qualquer solução que não seja, em alguma medida, bukeliana (mas, ao mesmo tempo, acima dos ciclos de ressentimento insano e autodestrutivo que são típicos do país).
A noção de que o Haiti pode ser moldado em uma democracia liberal atlantista e iluminista, organizada ao redor do culto aos direitos humanos é uma ilusão de quem acha que a humanidade é uma tábula rasa.