Para traçar a história do indigenismo no Brasil, remetemo-nos inicialmente à atuação dos padres jesuítas, marcados por grandes personalidades históricas como Manuel da Nóbrega, José de Anchieta, que trabalharam para a catequese dos povos ameríndios ao mesmo tempo em que procuraram protegê-los da exploração escravagista de estrangeiros e prepará-los para contribuir com o amplo processo de colonização que construiu o País.
A atuação dos padres da Companhia de Jesus foi decisiva para a promulgação do Alvará Régio e da Provisão de 1º de abril de 1680 pelo príncipe regente do Reino de Portugal e Algarves, que autorizou os missionários a prosseguirem sua atuação como maneira de assegurar o domínio português no Maranhão, o que acabou sendo estendido a todo o território brasileiro.
Podemos considerar também que os Mamelucos de São Paulo – filhos de mães índias e pais portugueses – e os Bandeirantes, tiveram uma contribuição decisiva para a relação com os povos indígenas durante o período colonial.
Os Bandeirantes contaram com uma verdadeira infantaria de índios e mestiços entre suas fileiras, o que lhes garantiu o conhecimento das rotas interioranas e o domínio de espécies da flora e da fauna que asseguraram o sucesso de sua empreitada. A partir deste movimento foi criada a expressão “sertanista”, utilizada para definir o trabalho indigenista até o final do século XX.
O indigenismo no período republicano teve início com a criação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN, conhecido como SPI), com a atuação do humanista Marechal Cândido Rondon, que na proteção aos povos indígenas tornou célebre a sua frase “Morrer, se preciso for. Matar, nunca”.
Rondon construiu as primeiras linhas telegráficas e promoveu a distribuição e o assentamento da população brasileira para ocupação do território nacional, de maneira a consolidar um grande projeto de integração do interior do País com as capitais. O SPI contou com a participação do etnógrafo alemão Curt Nimuendaju, que ofereceu inestimável contribuição ao contato pacífico com diversos povos até então isolados e por ironia do destino faleceu por uma flechada tikuna na região do Alto Solimões. Esta foi a primeira iniciativa para delinear as obrigações republicanas do Estado brasileiro moderno para a proteção de seus povos nativos.
Em 1967, após uma crise institucional, o governo militar criou a Fundação Nacional do Índio, a Funai, com intuito de promover um novo modelo de indigenismo de Estado, marcado pelo reconhecimento das particularidades do nível de integração de cada etnia indígena à comunhão nacional, criando o Estatuto do Índio, em 1973. Durante este período houve uma convergência entre diversos atores, tanto militares quanto da Igreja católica e de grupos indígenas integrados para a inclusão compulsória dos índios ao conjunto mais amplo da sociedade brasileira, com o desenvolvimento de projetos para agricultura, extração de madeira e exploração mineral.
Com a abertura democrática, diversos segmentos da sociedade civil, como a Confederação Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), por meio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Conselho Nacional de Geologia, a Associação Brasileira de Antropologia e a União das Nações Indígenas, atuaram na Assembleia Constituinte para firmar posicionamento contrário à aculturação compulsória dos índios brasileiros. Como ato contínuo, foi proposta a criação do Estatuto dos Povos Indígenas, cuja tramitação até hoje não avançou no Congresso Nacional, deixando um lapso de regulamentação em dois artigos constitucionais, 176 e 231, que versam sobre a exploração mineral e energética em terras indígenas.
No bojo mais amplo do projeto neoliberal da política chamada de “Estado Mínimo”, em 1994 foi criada a ONG Instituto Socioambiental (ISA), sendo que um de seus sócios-fundadores, Márcio Santilli, veio a assumir a presidência da Funai entre 1995/96. Em sua visão, o órgão indigenista era um “elefante branco” e as atribuições do Estado de proteção aos povos indígenas deveriam ser transferidas para organizações privadas, entre elas aquela por ele integrada.
Em pleno exercício da presidência da Funai, Santilli afirmou que a mesma não era imprescindível aos povos indígenas, dizendo que ela “é uma morta-viva que continuará pairando sobre a política indigenista até que haja alternativas consistentes a esse modelo”. Esta visão privatista das atividades fim do indigenismo e a consequente transferência para as empresas pertencentes aos seus pares atingiu os campos da saúde, dos projetos educacionais, da proteção aos povos isolados, da gestão ambiental, retirando progressivamente a Funai das áreas indígenas, que são terras públicas pertencentes à União, abrindo espaço para a entrada de instituições alheias ao poder público, inclusive estrangeiras. A gestão de Márcio Santilli na Funai inaugurou a época da terceirização da assistência indígena e de uma promissora atividade para as ONGs e seus dirigentes.
Estas medidas de terceirização do indigenismo para a iniciativa de mercado foi realizada no bojo da venda dos ativos da Vale do Rio Doce, a maior empresa mineradora nacional, e da consolidação do Fundo Mundial para o Meio Ambiente (Global Environmental Facility – GEF), que visava consolidar um modelo de governança global a partir da retórica ambientalista, ao qual o Brasil aderiu em 1994. Como exemplo desta perspectiva do neoliberalismo hegemônico, no artigo “o índio hyper-real”, da antropóloga Alcida Rita Ramos, é descrita a trajetória de um indígena do Alto Rio Negro em Brasília no início dos anos 1990, buscando apoio para regularizar a atividade econômica de mineração em sua terra de origem. Contudo, o mesmo foi discriminado e não conseguiu apoio das ONGs indigenistas em função de suas pretensões e da realidade de seu povo não caberem na agenda burocrática de representação dos povos ameríndios feita por essas empresas aos seus financiadores estrangeiros.
Conforme aumentou o volume do aporte de recursos financeiros, bem como dos interesses internacionais sobre a floresta amazônica, houve um aumento exponencial da atividade das ONGs, com sua subsequente profissionalização ao ponto em que atualmente seja muito sutil a separação entre o segundo e o terceiro setores no que tange aos “fins lucrativos” das atividades dessas pessoas jurídicas.
Assim, as ONGs indigenistas passaram a atuar em substituição ao Estado, tanto por meio de empresas de consultoria como subsistindo a partir de doações provenientes de fundos internacionais. Neste sentido, levantam-se questões como aquelas propostas pelo antropólogo Benjamin Buclet, ao perguntar em qual momento estas empresas indigenistas darão transparência dos termos dos acordos feitos com nações estrangeiras aos governos de seus países de origem e às próprias comunidades que elas alegam representar.
Essa relação entre diferentes governos e as ONGs, atuando conjuntamente com empresas privadas de propriedade dos seus próprios dirigentes e aparelhando organizações indígenas para defender seus interesses, alcançou uma nova fase a partir de 2006, com a criação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB. Assim, a atuação difusa das empresas indigenistas do terceiro setor passou a uma nova fase oficiosa de assessoramento ao movimento indígena, inclusive organizando campanhas junto aos países europeus de boicote econômico ao Brasil e participando da elaboração da Declaração Universal sobre Direitos dos Povos Indígenas.
Foi durante este período que ocorreu o episódio chamado no meio indigenista de “tomada de poder das ONGs”, que se consolidou com o antropólogo Márcio Meira na presidência da Funai, junto de sua principal diretora Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão e a nomeação do assessor Aluizio Azanha, membros da ONG Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Durante esse período, no primeiro semestre de 2008, os jornais noticiaram que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) iria investigar 25 ONGs em atuação na Amazônia por biopirataria.
A revelação das relações pouco republicanas exercidas entre as empresas indigenistas e algumas esferas do poder público decorreram na criação do Fundo Amazônia, que tratou de dar um pouco de transparência aos recursos provenientes da Noruega e da Alemanha, visando a construção de narrativas e práticas institucionais desde uma perspectiva supranacional de governança da natureza e internacionalização da Amazônia, deixando ainda obtusa a interferência norte-americana exercida por meio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). A promiscuidade das relações entre empresas indigenistas e instâncias internacionais hoje expõe a contradição entre o posicionamento radical das mesmas contra a abertura do debate sobre a regulamentação da mineração em terras indígenas, que já acontece em larga escala de forma ilegal, sem pagar tributos ao Estado e cujo produto é muitas vezes recepcionado por nações estrangeiras que financiam as ONGs.
Enquanto as ONGs lutam para inviabilizar o debate democrático sobre os projetos de desenvolvimento econômico em Terras Indígenas sob alegação de “preservação das culturas”, promovem a entrada de organismos internacionais em terras públicas da União, inclusive com criminalização dos próprios índios e incentivam campanhas favoráveis ao aborto entre os povos indígenas, depois de mais de 30 anos de ações do Estado brasileiro para aumento das taxas de crescimento dos povos nativos.
Diante do exposto, podemos considerar que as ONGs há três décadas deixaram de ser “não-governamentais” e “sem fins lucrativos”, tendo ocupado espaço em todas as instâncias de governo, no âmbito dos três poderes republicanos, ocupando cargos no Executivo, realizando lobby e elegendo representantes no Legislativo e adentrando com ativismo judicial no Poder Judiciário, além de aumentarem seus amplos espaços na mídia em geral.
Temos como exemplo desse tipo de agenciamento o caso da construção da usina de Belo Monte, na qual representantes dessas empresas indigenistas: i. Realizaram os estudos de impacto ambiental do empreendimento; ii. Organizavam manifestações dos indígenas durante as obras; iii. Fizeram campanhas midiáticas contra o empreendimento; iv. Assessoraram o Ministério Público Federal na Ação Civil Pública que questionou os resultados do licenciamento; v. Fizeram lobby junto a parlamentares para pressionar o governo federal; e vi. Avaliaram o procedimento administrativo dentro da Funai.
O resultado disso foi um modelo de licenciamento no qual a maior parte da indenização pela usina, que deveria ser destinada aos índios, fosse convertida em folha de pagamento a empresas privadas pertencentes aos membros das ONGs, como a Lorenz Consultores Ltda. e a AMtrópica Consultoria Socioambiental.
Não obstante, devemos considerar ainda a criação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas, a PNGATI, por meio da pela Lei nº 7747/2012. Tal iniciativa recebeu aportes diversos, em especial do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Assim, um montante generoso do orçamento da Funai passou a ser destinado a gerir os recursos provenientes de agências internacionais para elaboração dos Planos de Gestão das Terras Indígenas, conhecidos como PGTAs, sendo que estes foram realizados inclusive em áreas não reconhecidas pelo governo brasileiro como sendo indígenas.
Desde então houve um direcionamento destes recursos, supostamente destinados a atender os povos indígenas, que se encontram na maioria dos casos em situações extremas de pobreza e vulnerabilidade psicossocial, para um pequeno grupo de empresas indigenistas, sejam elas de cunho acadêmico e antropológico, de missionários religiosos ou ambos. Desta forma, consolidou-se a substituição, pretendida como definitiva, do indigenismo de Estado para o indigenismo de Mercado. Como consequência prática temos o fato de que, segundo dados da própria Funai, ao longo de oito anos os resultados da maior parte desses PGTAs jamais retornaram ao governo brasileiro. Entretanto, todos eles foram repassados a instâncias internacionais, especialmente aos governos da Noruega e da Alemanha, além dos EUA e das Nações Unidas.
Este breve artigo estabelece uma defesa dos povos indígenas e dos interesses do Brasil em meio a este breve histórico do cenário geopolítico e do indigenismo nacional. Nosso desejo é que a garantia da soberania promova o crescimento do País, a integração do território nacional, a geração de renda e o aperfeiçoamento na distribuição de riquezas para todos os concidadãos, considerando um modelo de desenvolvimento sustentável adequado à realidade brasileira, atendendo às urgentes demandas econômicas e sociais da totalidade de nosso povo, bem como da conservação do meio ambiente. Desta forma, desejamos ampliar o debate sobre o papel do Estado brasileiro na defesa dos direitos indígenas e a necessidade de sopesar estas questões no âmbito da comunhão nacional.
Por Brasilino dos Santos
Originalmente publicado no Portal Bonifácio