O que está a acontecer no Chile é uma revolução. Não se tratam apenas de protestos e de revolta popular contra um governo de direita que encareceu o custo de vida do povo mas duma mudança estrutural do país.
Bom lembrar que revoluções começam, via de regra, através de manifestações populares de descontentamento que, capturadas por intelectuais, ganham uma direção que lhes falta. Foi assim na revolução francesa onde as ondas de rebelião no campo e nas cidades foi capturada pela gironda que tinha um projeto estruturado de monarquia constitucional delineada nos porões das lojas maçônicas pelos pensadores da ilustração.
Foi também o que aconteceu na Rússia de 1917 em que os descontentamentos e a fome causada pela permanência na primeira guerra deram aos bolcheviques a oportunidade de tomar as rédeas dos sovietes. Nos dois casos uma inteligência, uma minoria organizada, se sobrepõe às forças caóticas de destruição a fim de construir uma nova ordem dos escombros.
O que se passa no Chile deve ser descrito em três passos; no primeiro trata-se de entender que Chile temos, no segundo que Chile está sendo criado, no terceiro o que isso significa para a América do Sul.
A atual constituição do Chile é de corte neoliberal nascida na ditadura de Pinochet. Ela dá pouco destaque ao papel do Estado na prestação de servições de saúde, educação e previdência. Os protestos querem uma nova constituição que garanta esses serviços via Estado. A princípio pode parecer que temos uma revolução pró Estado mas não se enganem.
A idéia de base do Unidad Social, movimento que unifica coletivos de esquerda e que passou a liderar as manifestações – a minoria organizada, a inteligência revolucionária – é a da sociedade civil organizada x Estado. Não custa lembrar que a lógica da era Pinochet também estava marcada por menos Estado no plano econômico e social embora por mais Estado no plano policialesco.
Agora o discurso que sustém o projeto do Unidad Social é o inverso: mais serviços com menos poder. Explico: a Mesa Sindical que forma o Unidad Social criou uma estrutura de “cabildos populares” espécies de comunas que seriam protótipos da democracia direta a ser implementada via nova constituinte, ou seja, uma espécie de experimento anarquista.
O clamor por um novo pacto social que garanta direitos básicos aos mais pobres é absolutamente legítimo porém as organizações da esquerda anarco-feminista e indigenista aprisionou esta aspiração justa dentro dum esquema completamente espúrio e que atende a interesses escusos.
Para se ter uma ideia a Mesa da Unidad conta apenas com coletivos de esquerda em sua composição como se a sociedade chilena estivesse perfeitamente espelhada por elas. Na Mesa temos a CUT chilena e a “No Mas AFP”, organizações marcadas pelo cariz de luta trabalhista e previdenciária mas quem dá o tom na Unidade Social são militantes que carregam um discurso democratizante/identitário ou comuno-anarquista.
É o caso de Barbara Figueroa, professora universitária ligada ao movimento Juventud Comunistas de Chile. Figueroa se tornou líder da CUT afastando Arturo Martinez da direção da mesma, um socialista moderado. Barbara faz parte do “Colégio de Profesores” organização que lidera manifestações estudantis desde 2006 e cujos dirigentes são, na sua maioria, filiados ao partido comunista chileno, não representando, portanto, o conjunto do professorado chileno mas servindo de fachada para organizações partidárias.
É o caso, inclusive, do seu atual presidente, Mario Aguilar, um dos fundadores do Partido de Los Verdes, de linha ecologista e ligado ao Movimento Siloísta fundado por Luiz Cobos e que tem por objetivo instaurar uma nova humanidade calcada na “diversidade”. Esse movimento deu origem, no Chile, ao Partido Humanista ao qual o sr. Aguilar pertence.
Outro nome importante nesse cenário é o de Alondra Carrilo, a líder do movimento feminista 8M que estão por trás do vilipêndio às Igrejas. A 8M é uma “internacional feminista” que não representa organicamente a sociedade chilena. A 8M foi fundada pela comunista Angela Y. Davis, entre outras militantes feministas; Davis é a criadora da ONG Critical Resistance que trabalha pelo fim dos “complexos prisionais” e pelos “direitos” de criminosos.
Outra fundadora é Mônica Benício da ONG Human Rights que está sob o auspício de várias fundações globais. Por tudo isto se vê em que direção está indo o Chile. Para aclarar ainda mais o cenário chileno lembro que a Human Rights Watch foi fundada como uma ONG americana em 1978, sob o nome de Helsinki Watch, cuja missão era monitorar o cumprimento pela então União Soviética dos Acordos de Helsinque.
A Helsinki Watch adotou a prática de publicamente “nomear e envergonhar” governos abusivos através de coberturas jornalísticas e colaborações com formuladores de políticas. Ao expor internacionalmente as violações dos direitos humanos na União Soviética e em seus parceiros europeus, a organização contribuiu para as transformações democráticas da região no final de 1980, servindo, portanto como navio quebra gelo para a implantação da pax americana e a unipolaridade.
Uma das organizações de mídia dos USA mais dedicadas a cobrir positivamente as mudanças no Chile é o Democracy Now, grupo financiado pela JM Kaplan, fundo de apoio a direitos humanos e ambientais, a Fundação Lannan que apoio a literatura indigenista e o indigenismo, a Park Foudantion do magnata da mídia Roy Park que financia causas liberais e ambientais, além da já conhecida e famigerada Fundação Ford, entre outras.
Portando o que estamos a assistir no Chile é a velha e conhecida revolução colorida onde um governo não perfeitamente alinhado aos interesses americanos é substituído por outro: é a revolução permanente pela via da democracia e não mais do comunismo puro e simples, uma revolução que despoleta um processo de dominação dum país pelas ONGs estadunidenses, poderes financeiros internacionais, coletivos anônimos que obedecem a comandos estrangeiros e a pautas exóticas e exógenas, forças estas comprometidas com a destruição final da malha nacional dos países que são suas vítimas.
Mas, no caso chileno ainda há um agravante que torna faz essa revolução colorida ganhar cor nova: o projeto da nova constituição aborda a autonomia das terras mapuches.
A pauta pela criação do Estado Mapuche merece um artigo em separado pela extensão do problema que coloca em risco não só a soberania do Chile quanto da Argentina. Primeiro é preciso lembrar que jamais existiu um povo mapuche e o que se convencionou chamar de mapuches são remanescentes de 4 povos que existiam na Araucania e Patagônia.
Em segundo lugar é preciso destacar que a luta pelo estado mapuche dentro dum novo estado comunal chileno se faz em torno da batalha pelo reconhecimento das identidades (sexuais, étnicas, geracionais) que marca a ideologia pós moderna. O historiador Fernando Pairicán vê na causa dos mapuches uma chance de incorporar o Chile de vez às tendências da pós-modernidade.
Isso tudo terá consequências desastrosas para a América do Sul caso realmente se concretize pois poderemos vir a assistir a primeira revolução anarco-colorida e identitária da história.
Quem conhece o passado sabe bem como esse tipo de experiência revolucionária tem a capacidade de provocar processos semelhantes em outros países. Sabemos que o Brasil vive, agora, um processo de implantação da pós modernidade via grande mídia e partidos/coletivos/intelectuais/propagandistas progressistas e da new left.
Sabemos como o cenário em toda a América do Sul vem se desenhando, nos mais variados países, em torno duma guerra híbrida entre partidos da direita patriótica neoliberal ao estilo republicano x identitários democratizantes pós modernos que é o esquema em cima do qual se desenha a revolução no Chile agora, assim como também por aqui, se delineiam reclamos cada vez mais intensos e organizados em torno de terras indígenas que podem vir a se valer do exemplo mapuche. Exportar essa mesma experiência pelo continente não será difícil se o exemplo do Unidad Social vingar e isto nos porá num quadro de balcanização do continente.
Um outro elemento da equação é o recente alinhamento do Chile em direção a Ásia via acordo do Pacífico. Em 2015 o Instituto Inter American Dialogue, sediado em Washington, deixou claro que a China era o parceiro invisível do acordo e ligou o alerta de vários thinks thanks e organizações americanas quanto aos rumos do Chile.
Quem tiver olhos que veja.
Por Rafael Queiroz
Publicado no Blog Catolicidade, em 20.10.2020