Por Pedro Augusto Pinho.
“Esse mundo é variado, seu padre. Há o café e a borra. Há o caldo e o bagaço. Há quem manda e quem é mandado”. (Darcy Ribeiro, O Mulo)
Numa homenagem aos 98 anos de Darcy Ribeiro, o grande intérprete e construtor do Brasil, iniciamos com a apresentação da sua análise do poder na América Latina. Embora pudéssemos tratar de uma teoria universal do poder, ela encontraria dificuldades e incompletudes na análise da nossa situação brasileira, que é, em muitos aspectos, a situação latino-americana.
Norberto Bobbio, elogiado pensador europeu, restringe o poder ao campo da ciência política, na busca de sua legitimidade. “Não há teoria política que não parta de alguma maneira de uma definição de poder e de uma análise do fenômeno do poder” (N. Bobbio, Stato, Governo, Società, Ed. Giulio Einaudi, Turim, 1985).
Darcy vê de modo mais orgânico, na intencionalidade do mando e dos instrumentos de sujeição. “O conceito de poder se refere ao exercício do mando por parte de autoridades acatadas (poderio), em comunidades previamente estruturadas como o quadro dentro do qual uma população vive seu destino (Nação)” (D. Ribeiro, O Dilema da América Latina, Vozes, Petrópolis, 1983, 3ª edição).
Daí que o conceito de poder de Darcy Ribeiro se refere “ao corpo de instituições e normas jurídicas que regulam e sancionam o sistema econômico, político, militar, ideológico (ordenação), fixando e garantindo direitos, deveres e competência de seus membros (legalidade) dentro de uma formação socioeconômica específica, estabelecendo possibilidades distintas de acesso e fruição de bens e regalias em sociedades desigualitárias (privilégio), e de exercício legal da autoridade (legitimidade), através de um aparato político-administrativo (burocracia), que coordena, articula e dirige todo sistema social sob a regência de um corpo supremo de tomada de decisões (Estado), encarnado por um corpo de hierarcas (governo)” (D. Ribeiro, obra citada).
Como então se dá a conquista do poder além dos limites do Estado, ou seja, a colonização? E Darcy tem das mais completas conceituações do império e do domínio colonial: “Em lugar de movimentos de tropas e de batalhas campais, (a guerra) se trava mediante conspirações, subornos, contratos, intimidações, quarteladas, treinamento de forças repressivas (lava jatos), programas de estudos sociológicos (e de todas as ciências), projetos econômicos e campanhas publicitárias” (D. Ribeiro, obra citada).
Em O Globo, de 20/10/2020, é anunciada a celebração de três tratados de intercâmbio bilateral entre o Brasil e os Estados Unidos da América (EUA). Objetivam “reduzir procedimentos burocráticos, administrativos e aduaneiros, nas operações de exportação, importação e trânsito de mercadorias”, usar “processos, sistemas e métodos reconhecidos internacionalmente para melhoria da qualidade da intervenção do Estado na atividade econômica” e reforçar “o compromisso conjunto para combate à corrupção, mediante a recuperação de ativos”.
Considerando que práticas internacionais são aquelas aceitas pelos EUA, é a invasão do poder do Império Estadunidense no Brasil. Curiosamente, nenhuma alusão ao copioso tráfico de drogas, nem no capítulo da corrupção nem nas operações de trânsito de mercadorias.
Voltemos ao conceito de poder para trazê-lo conforme o Manual Básico da Escola Superior de Guerra (ESG), na edição de 1986. São considerados dois critérios: o das “dimensões em que atuam seus meios”, isto é, os campos de atuação do poder nacional – poder político, poder econômico, poder psicossocial e poder militar (dada necessidade de estudar, especificamente naquela instituição, o poder militar, este se separa do poder político); e o critério dos “elementos constitutivos de seus meios”: fundamentos, fatores, componentes e órgãos.
“Os fundamentos são as bases substantivas de sua composição estrutural (homem, terra, instituições); os fatores são os elementos adjetivos que modificam os fundamentos; os componentes são as instituições integradas coerentemente (âmbito cultural, meio ambiente); e os órgãos são as entidades que desempenham funções de emprego do Poder Nacional” (Manual citado).
Escreve Darcy, no capítulo “As classes dominantes”, do citado O Dilema da América Latina: “Todo o sistema político da América Latina de nossos dias está submerso na conspiração. Conspiram os governos para manter-se no poder. Conspiram civis e militares. Conspira a direita e conspira a esquerda. Esta irrupção sediciosa não é uma enfermidade em si, mas o sintoma de um mal mais grave que é a obsolescência da estrutura do poder.”
Darcy chama a atenção para as colônias escravistas, produtoras dos desejados produtos agrários e minerais para a Europa rica, que eram as mais prósperas, e as colônias de povoamento, implantadas em terrenos hostis, impróprios para a produção exportadora, e que tiveram desenvolvimento mais autônomo, formando uma classe dominante distinta daquelas das sociedades dependentes. Este fato transformará a colônia próspera num país subdesenvolvido e a colônia voltada para seu provimento num país de burguesia empreendedora.
Assim, temos o Brasil consolidando a subordinação da mão de obra ao patronato e mantendo vínculos coloniais ou neocoloniais com as potências estrangeiras. Estes fatos converteram a “independência latino-americana em uma farsa”.
Este patronato, cuja tipificação, formação e atualidade são descritas por Darcy, será o maior empecilho ao progresso nacional. Outra força constritora é a representada pelos interesses imperialistas, antes identificados pelas nações e hoje também por sistema global, como o financeiro internacional, ou a banca.
No entanto, surge, vez por outra, um patriciado pressionado pelo crescimento de um empresariado emigrante, pelo avanço das tecnologias da burocracia, por militares e profissionais liberais, formando uma burguesia ávida pela modernidade e novos produtos. Assim temos o patriciado representado por dirigentes como Juscelino Kubitschek, no Brasil, Arturo Frondizi, na Argentina, Eduardo Frei, no Chile, entre outros, que trazem empresas estrangeiras para o seu país na esperança de progredir, aumentar, dinamizar o sistema produtivo.
Alterar o poder não é tarefa de vanguardas nem de lideranças carismáticas. A mudança da estrutura de um Estado e a existência de novas direções, que sejam distintas das atuais, só é possível mediante uma revolução. “Ninguém faz revolução porque quer, e ninguém deixa de evitá-la porque gosta. A revolução só é admissível onde se tornou inevitável”.
“A revolução torna-se tão imperativa como uma operação cirúrgica, onde o domínio despótico de uma minoria foi incapaz de promover um progresso social generalizado.” “A revolução social não é redutível a uma pedagogia.”
Os patronatos latino-americanos, assim como o brasileiro, trabalham pela revolução. Tanto que hostilizam e golpeiam todas as possibilidades de maior distribuição de benefícios sociais.
O Brasil teve um processo nacional desenvolvimentista diferenciado com o trabalhismo nacionalista de Vargas. Mas este sofreu três golpes (1945, 1954 e 1964) e uma união de todas as forças, inclusive com os comunistas, para impedir seu ressurgimento ao fim dos governos militares, na pessoa de Leonel Brizola.
Darcy Ribeiro escreveu O Dilema da América Latina em 1971. Assim, ele ainda trata da posição hegemônica dos Estados Unidos da América (EUA) e da esperança na revolução tecnológica termonuclear.
Os 30 anos que medeiam estas considerações de Darcy e o novo século trouxeram profundas alterações na estrutura de poder. O poder financeiro suplantou o poder industrial e passou a ser hegemônico na maior parte do ocidente desenvolvido. Também as estatísticas de produção pouco significado passam a ter quanto aos produtos e outros indicadores tradicionais. O poder foi transferido para um capital anônimo, e a tecnologia utilizada é a da informação.
A antes denominada “marginalidade” vem assumindo o patriciado com seus métodos escusos, desonestos, encobertos até por novas seitas religiosas. Esta marginalidade nada tem a ver com os conceitos socioeconômicos marxistas ou não. É a marginalidade diante da lei penal burguesa, que se torna agora sua aplicadora, com referenciais diferentes.
Esta é a razão das pouco lógicas disputas dentro das categorias operativas do novo patriciado. Quanto ao patronato continua alheio às questões nacionais. Afinal seria muito estranho um capital das drogas, colocado em paraíso fiscal, corruptor de toda estrutura de Estados coloniais, preocupar-se com questões nacionais ou sociais, salvo para manutenção do consumo e a proteção dos seus distribuidores. E para isso dispõe dos avançados modelos informacionais.
Darcy Ribeiro anteviu muitas questões, buscou solucionar problemas da civilização industrial, mas não pode, como a quase totalidade dos analistas políticos ainda vivos e atuando no século XXI, perceber o poder da marginalidade, controlando a financeirização da economia e dominando os milicianos, gestores dos espaços públicos e dos estados.
A opção pela revolução, “suscetível de tornar-se tão terrível quanto a guerra e, mais ainda, porque é a guerra dentro da mesma nação”, pode ser impedida pela consciência de que o trabalhismo nacionalista, uma criação brasileira, tem as respostas para o desenvolvimento integral do Brasil, em todas as regiões e para toda população, com trabalho e justiça social: moradia, saúde, educação, assistência e previdência, e possibilidade efetiva de participar das decisões de governo.
Uma verdadeira democracia, que em nada se parece com estes arremedos liberais ou neoliberais, pode ainda ser construída.
Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.
Com informações Monitor Digital