Por Rafael Queiroz
Trump antissistema é a falácia da hora. Vamos ver como ele apenas defende uma realocação dentro do sistema nascido em 1945 para fortalecer o império combalido pela perda de espaço em razão do processo de globalização e não uma refundação das bases que estruturam o mundo desde então.
1- O sistema que emergiu da vitória aliada na II Guerra Mundial foi o do Padrão Dólar. Há dois modos de dominar um povo: pelas armas e pelos meios financeiros. Na medida em que o dólar virou o lastro de todas as moedas os USA passaram a governar o mundo de modo sutil mas real.
2- Deste sistema emergiram instituições como ONU/FMI/BID/CFR/OMC/OIT/OCDE etc. Eles tinham por fim assegurar os direitos humanos – cujo principal fiador era e é os USA via ONU cujo grosso do financiamento vem de Washington – além do padrão dólar que instituiu mecanismos para um mercado global onde os USA teriam a hegemonia financeira mas abrindo espaço para uma co-hegemonia com Alemanha, França, Reino Unido, Japão e, a partir dos anos 70, China.
3- Neste desenho a elite americana, europeia, chinesa e japonesa dividiriam o mundo entre si. Só que o pedaço do bolo foi ficando cada vez menor para os USA. Apesar disso Clinton, Bush e Obama não se mexeram por que o capitalismo americano – cada vez mais financeirizado e terceirizado quanto a produção – parecia ainda bem robusto. Foi a crise de 2008 que acendeu o alerta pois quem forneceu boa parte dos recursos financeiros para os bancos americanos se recuperarem foi a China, detentora de grande parte dos títulos públicos americanos. A China passou a cobrir os déficits orçamentários dos EUA. O BC chinês não comprou títulos do Tesouro americano visando a auferir juros. Ele comprou dólares apenas para manter o valor do dólar apreciado em relação ao yuan, para que os americanos pudessem comprar mais produtos dos exportadores chineses. E então utilizou esses dólares para comprar títulos do Tesouro americano.
4- Trump percebendo isso busca virar o jogo e não acabar com ele. Ele desvaloriza o dólar para enfraquecer a China, aumenta tarifas para cobrir déficit comercial, repatriando capital. Só da Apple, Trump repatriou mais de 800 bilhões de dólares. Para que repatriar capital? Simples: para que seja o fluxo de dinheiro no mercado interno e a obtenção de dólares via exportação quem garanta o financiamento do orçamento dos USA que, com isso, reduziria sua dependência da China.
5- O que dissemos no início? Que se domina um povo pelas armas ou pelas finanças. A China, ao se tornar a grande financiadora dos USA, passou a pautar, em parte, a política econômica dos EUA. Por outro lado isto era interessante às mega corporações americanas que pagam menos imposto na China (Nos EUA, antes de Trump, pagavam 35 por cento) e menos pela força de trabalho. Donald, então, fez uma reforma tributária para as grandes corporações ( Trump quer manter a hegemonia delas, não é um revolucionário antissistema coisa alguma) voltarem a exportar dos EUA em vez de fazerem isso da China. Para isto reduziu as garantias trabalhistas, reduziu impostos sobre bancos e grandes companhias para 21% ( menor taxa dos últimos anos) aumentando a concentração de renda. Isso reforçou sobretudo o setor de Big Techs ( Apple e Microsoft de Gates foram as grande beneficiadas). A reforma de Trump reduziu a progressividade do imposto de renda favorecendo os grandes bilionários além de isenção para heranças. Não a toa Starbucks, Comcast, Disney Company, JP Morgan, Walmart e Big Techs apoiaram a reforma do presidente. Onde isso é ser anti-sistêmico? Nunca foi nem será.
6- O FMI passou a temer que isso trouxesse desaceleração do comércio global – se você levanta tarifas a tendência é que todos levantem para se proteger num efeito cascata. Trump quer, com isso, destruir a globalização? Não. Desacelerar é ganhar tempo. Imagine um time que está perdendo um jogo por que o adversário toca rápido a bola. O segredo é cadenciar, reduzir o ritmo da partida para retomar o fôlego e contra-atacar, virando o placar. O que Trump imagina é: os EUA precisam refortalecer seu mercado interno primeiro. Só depois de recuperá-lo é que podemos falar de acelerar o jogo do comércio global. O fechamento do Império traz perdas mas ele tenta, enquanto ganha tempo, compensá-las com governos títeres como o do Brasil de Bolsonaro.
7- Então que peças do sistema não apoiam Trump? Wall Street e o Global Research apontavam um alto risco para os mercados caso Biden vencesse:
“Uma vitória dos Democratas pode ameaçar políticas defendidas por Trump e geralmente saudadas por Wall Street, incluindo taxas mais baixas de impostos corporativos e menor regulação, disseram analistas…Uma vitória em potencial de Joe Biden… e, em maior medida, uma ‘virada Democrata”, geralmente são consideradas resultados mais hostis ao mercado“.
O que fez Wall Street mudar no fim da eleição se Trump apoiou a retirada da lei Dodd-Frank que impunha restrições a derivativos, criada depois da crise de 2008 como as desregulações dos fundos de pensão como pedia Wall Street?
Simples: o pessimismo, de setores do mundo financeiro, em uma recuperação econômica dos USA sem um pacote de políticas sociais e sem arrecadação com impostos (lembrem que Trump cortou impostos). Stiglitz e Soros passaram a apostar no discurso de que, com a renúncia fiscal americana, o déficit não será coberto e o crescimento impossível num quadro de covid-19 que demandaria política orçamentária e não apenas monetária. Por outro lado o temor de que a globalização sofra ainda mais retrocessos com a pandemia fê-los apostar em Biden que não parece tão disposto a uma guerra comercial.
Em conclusão: há setores financeiros ao lado de Trump e outros contra Trump. Ele não quer o fim da globalização mas o USA com o maior naco da riqueza gerada pela globalização, quer as instituições globais – FMI/FED/OCDE, etc. – seguindo os ditames duma retomada industrial da economia americana e, por isso, menos dedicadas a fomentar abertura comercial, além de sustentar a politica de baixos juros do governo estadunidense para reassegurar aos EUA o espaço perdido. LOGO, O QUE ESTÁ A ACONTECER É APENAS UMA LUTA INTRASSISTÊMICA PELO SENTIDO DA GLOBALIZAÇÃO E NÃO ENTRE O SISTEMA E O ANTISSISTEMA.
Aqui uma matéria de 2016 do site “Politico Magazine” com o título: “Por que Wall Street está de repente apaixonada por Trump? Não é apenas o retorno de ‘Government Sachs’ na pessoa do novo estrategista da Casa Branca Steve Bannon. Os comerciantes estão pensando que as políticas de Trump podem realmente funcionar – pelo menos para eles”.