Por Eduardo Salvatti.
Obstinados na reciclagem de suas categorias de pensamento, desde o princípio da globalização, os neomarxistas lançaram-se em calorosas discussões circulares e autorreferentes em buscas incessantes por terminologias suficientes para explicar os adventos modernos. Antes de realizarem que o marxismo, na condição de uma filosofia que se propõe a ser científica, haveria de ser superado pelas mudanças de conjuntura, preferiram se perguntar como compreender a “teoria do valor do trabalho” em um contexto de automação dos meios de produção, como determinar “o proletariado” após sua substituição pela multiplicidade “precariada”, e como combater “o fascismo” – seja lá o que isso signifique – na era da hegemonia liberal.
Como pretenso solucionador das problemáticas apresentadas, Antonio Negri – que já há décadas tentava restaurar a intelectualidade do Partido Comunista Italiano – insurgiu contra a inocuidade de seus pares pós-modernos apresentando rumos para uma nova esquerda com o lançamento da obra “Império”, nos primórdios do terceiro milênio. Expondo uma tese escatológica convenientemente muito semelhante com a desenvolvida pelo pensador direitista Olavo de Carvalho em “O Jardim das Aflições”, de 1995, Antonio Negri empreende uma análise historiográfica das civilizações à luz do conceito de império.
Elididos os aspectos críticos, analíticos e acidentais de “Império”, a obra apresenta uma continuidade do projeto marxista então interrompido com a queda do Muro de Berlim substancialmente fundamentada em três frentes complementares: o acolhimento e subsequente integração indiscriminados dos imigrantes que chegam à Europa; a promoção de uma cidadania global no caldo da multicultura; e a apologia do expansionismo econômico chinês como alternativa ao imperialismo americano. Em síntese, Antonio Negri se fez o pensador mais prestigiado da esquerda mundial abdicando de todos os imperativos marxistas, abraçando o universalismo pós-moderno e conciliando de forma irrestrita com o capitalismo dirigido oriental.
Tendo rechaçado as experiências socialistas do século XX que, a fim de assegurar suas autonomias ante o imperialismo, recorreram a políticas nacionalistas, protecionistas e industrializantes, Antonio Negri preferiu resgatar o trotskismo à luz das narrativas coloridas pós-modernas. Indiscutivelmente inserido em uma ótica essencialmente europeia e, portanto, cega às adversidades enfrentadas pelo hemisfério sul, elaborou um projeto apátrida e partiu em defesa da integração dos imigrantes médio-orientais e africanos à Europa, empreendimento já vigente que somente restaura os padrões coloniais de desenvolvimento primeiro-mundistas, haja em vista que realoca a mão-de-obra oriunda do terceiro mundo nos serviços mais primários e, não obstante, vem ao bojo dos interesses do grande capital internacional: a imigração em massa aumenta o exército industrial de reserva e propicia que se force o salário mínimo e os direitos trabalhistas para baixo. Bastaria que Antonio Negri tivesse a mínima fundamentação na “teoria da dependência econômica” ou na “mais-valia global” de Milton Santos para não incorrer nesse erro primário mas, talvez não por engano ou desconhecimento, tomou o partido do liberalismo global contra todos os países em desenvolvimento.
Ademais, como corolário da defendida imigração em massa, desencadear-se-á inexoravelmente a dissolução das identidades étnicas, culturais e nacionais, compondo gerações de indivíduos desenraizados de suas pátrias e alheios aos seus semelhantes que, tão logo, não mais poderão identificar. Não obstante, toda esta descaracterização e degenerescência das culturas, que vem ao bojo da pobreza e da dependência geradas pela globalização outrora denunciadas pelas esquerdas, é agora entendida como um meio para a universalização da cidadania; e suas consequências, como o aumento da criminalidade nos países que recepcionam os refugiados e a realocação de integrantes do terceiro mundo em empregos rejeitados pelos seus colonizadores, como “efeitos colaterais”.
Como medidas paliativas das próprias proposições econômicas, o liberal-comunista alavanca o reforço das legislações trabalhistas e a renda básica universal como meios de supressão das desigualdades e mitigação da extrema pobreza. Ora, a renda básica universal – sim, a mesma defendida pelos bilionários Elon Musk e Jeff Bezos – não é senão uma proposta liberal que visa fazer do pobre antes consumidor que cidadão e fundamenta-se na premissa que o Estado não deve garantir o fornecimento dos direitos mais básicos ao cidadão, mas pagar-lhe para que ele faça com o dinheiro o que quer que pense lhe convier, como fazer depósitos no exterior ou investir nas empresas de Bezos e Musk.
Em boa hora, vale pontuar que durante a insurgência do fascismo, comunistas e liberais militaram lado a lado contra a instauração dos direitos trabalhistas. Tanto na Itália, com a Carta Del Lavoro de Benito Mussolini quanto no Brasil, com a CLT de Getúlio Vargas, os direitos trabalhistas foram entendidos pela esquerda como uma conciliação de classes com a burguesia que acomodaria os trabalhadores e apaziguar-lhes-ia o ímpeto pela revolução. Com relação a isso, parece que a esquerda finalmente aprendeu com seus erros e, tendo abandonado, em parte, o antifascismo, compreendeu a indispensabilidade dos direitos trabalhistas.
No que se refere a proposta de Antonio Negri relativa a aposta no expansionismo econômico chinês como alternativa ao domínio hegemônico estadunidense, embora pragmaticamente alinhada aos interesses da multipolaridade, não poderia ser compreendida como um fim em si mesma, mas apenas na condição contingente de uma afronta a unipolaridade americana. O modelo de desenvolvimento chinês é propulsionado pelo capital estrangeiro de empresas japonesas, europeias e estadunidenses apensas sediadas na China, onde produzem bens de consumo se valendo da mão-de-obra local alocada em serviços de base. Essa pseudo-industrialização impõe à China uma inexorável dependência econômica e, globalmente, fomenta o presente processo de universalização das escalas de produção que sujeitam os países em desenvolvimento a condições coloniais. Ademais, o progresso tecnológico na China desenvolvido, consuma a subordinação das nações ao infindável avanço material da técnica, gerador de padrões de consumo inalcançáveis aos demais países não industrializados. Em síntese, o presente modelo chinês não é senão uma restauração oriental do capitalismo presente no ocidente que, bem como as proposições de Antonio Negri, não apresenta qualquer mudança real de paradigma.
Assim, levando em consideração os aspectos apresentados, faz-se mister reconhecer o fracasso absoluto da esquerda em relação a emancipação das nações, a apologia da autodeterminação dos povos e a promoção de padrões de vida adequados à dignidade humana. Tanto na Europa como no Brasil, a esquerda se comprometeu tanto quanto pode com os desmandos do grande capital e, assimilando as proposições liberais, não somente acatou seus desejos como suprimiu o espaço de possíveis oposições reais ao sistema. Não cabe mais a esquerda “fazer autocrítica”, resta a esquerda somente desaparecer ou abdicar por completo de suas categorias de pensamento apátridas, antitradicionais e materialistas.
Contundente análise, faz pensar e muito. As esquerdas, tais como agem agora e no passado, são cúmplices deste horror econômico que vivemos. Poucas exceções há. No Brasil tivemos Getúlio e Brizola que também foram atacados veementemente pelas esquerdas. Obrigada pelo texto que joga luzes sobre esta sombria “esquerda”.