Resenha Estratégica – Vol. 18 – nº 10 – 17 de março de 2021.
Elisabeth Hellenbroich, de Wiesbaden
A Alemanha encontra-se em meio a uma absurda “guerra cultural”, onde a sociedade é confrontada diuturnamente por autoproclamados “guardiões” e “juízes”, que levantam suas vozes em defesa da “linguagem de gênero” e da “inclusão e antidiscriminação politicamente corretas”. Trata-se de uma discussão sofista e confusa sobre palavras e linguagem, promovida pelos que pretendem abolir as estruturas ditas “patriarcais” na sociedade em nome da linguística feminista, a pregação das virtudes da “linguagem de gênero”, “descolonização” e “desconstrução” na filosofia e na arte.
A obsessão pela “linguagem de gênero” tem conquistado diversas emissoras de TV e a mídia em geral. Os principais âncoras noticiosos da rede de televisão ZDF e da Deutschlandfunk (Rádio Alemanha) não usam mais o genérico masculino – em vez de “programadores” (Programmierer), usam “programador*s” (Programmierer*innen); em vez de “ouvintes” (Zuhörer), “ouvint*s” (Zuhörer*innen); em vez de “doutores” (Ärtz), “doutor*s” (Ärtz*innen); ou seja, usam o “asterisco de gênero” para a palavra ser percebida como “neutra”, sendo a inclusão do gênero feminino reforçada pelo termo “innen” (dentro).
O projeto Gender Light é uma criação de mulheres jornalistas, apoiado, inclusive, pelo Ministério da Família alemão, que oferece ajuda a todos que se sentem discriminados pelo uso da linguagem e da fala. Por exemplo, se entre 99 médicos homens uma médica, ela pode se sentir reprimida e discriminada por não ser mencionada explicitamente na expressão genérica “médicos”, daí a expressão Ärzt*innen. As normas também exigem que “se mulheres ou pessoas trans e inter-sexuais” estão sendo mencionadas em um determinado texto, elas devem ser explicitamente identificadas.
Outro exemplo típico é a tempestade de indignação deflagrada contra o conhecido historiador da Universidade Humboldt de Berlim, Joerg Baberowski, cujo “centro de estudo das ditaduras” (ele é especialista em História do Leste Europeu e tem vários estudos sobre Stálin, entre outras personagens comunistas históricas) foi “cancelado” e teve suas palestras na universidade boicotadas, acusado de ser muito “pró-russo”. Como muitos outros professores que lecionam em diferentes universidades alemãs, tornou-se vítima do que hoje é conhecido como “cultura do cancelamento”.
Esse debate sofista teve origem nos EUA, com Judith Pamela Butler, filósofa e teórica de gênero, cujo trabalho tem influenciado a filosofia política, a ética e os campos do feminismo da “terceira onda”. Ela tem raízes na “teoria crítica da Escola de Frankfurt” e ficou conhecida por seus livros “Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade” (1990) e “Corpos que importam: os limites discursivos do sexo” (1993), nos quais desafia as noções convencionais de gênero e desenvolve a sua teoria da “performatividade de gênero”, de grande influência nos estudos feministas e sobre homossexualidade. Butler tem apoiado movimentos pelos direitos de homossexuais e tem se engajado em várias questões políticas contemporâneas, incluindo críticas ao sionismo, à política de Israel e seus impactos no conflito israelense-palestino.
Seguindo a argumentação da teoria de Butler, podemos ver que o debate atual na Alemanha, qualifica aqueles que defendem certos valores fundamentais da nossa sociedade – como justiça, tolerância, amor, busca da verdade, solidariedade, crença em uma religião monoteísta e na vida familiar – como “racistas” ou “extremistas de direita”. Pessoas orientadas para aqueles valores são consideradas como expressões típicas de uma “visão do mundo racista e patriarcal” ou crentes na filosofia clássica de “filósofos brancos mortos” (p.ex., Platão ou Aristóteles). Em vez disto, exige-se que tais “crenças” sejam substituídas por uma filosofia de “identidade”.
Um caso típico é um artigo publicado na “New York Times Magazine” de 2 de fevereiro último, sobre o professor da Universidade Princeton, Dan-el Padilla Peralta, um professor afro-americano de estudos clássicos greco-romanos. No artigo, ele é citado afirmando que esses filósofos clássicos estariam muito ligados à identidade da “civilização ocidental” baseada nos conceitos de “sabedoria e supremacia brancas”. Por isso, pede um “expurgo” dos currículos universitários da filosofia de “filósofos brancos mortos”, representantes de uma filosofia “racista”.
Igualmente exemplar é o caso dos currículos de Matemática na Universidade de Oregon, com a observação do Departamento Cultural da universidade, de que, em Matemática, 2+2≠4, pois esta “regra” seria originada da “supremacia branca”, pelo que formas alternativas deveriam ser investigadas (sic) (Frankfurter Allgemeine Zeitung, 02/03/2021).
Em 22 de fevereiro, o Prof. Wolfgang Thierse, de 77 anos, ex-presidente do Parlamento Federal alemão, publicou um ensaio no Frankfurter Allgemeine Zeitung, intitulado “Quanta ‘identidade’ a sociedade pode tolerar? A política identitária não deve se tornar uma guerra de trincheiras que destrua o sentido do espírito público: o que precisamos é de uma nova Solidariedade”. Thierse identifica corretamente tais formas modernas de guerra ideológica e afirma que, hoje, as questões sobre o pertencimento cultural das pessoas estão causando mais debates acalorados e divisões na sociedade do que as referentes à “justiça política e social”. O debate ideológico centra-se na “identidade étnica e sexual”, no debate sobre “racismo”, “pós-colonialismo” e “gênero”. Segundo ele, a “política de identidade de direita” se concentra apenas na “homogeneidade cultural e nacional”, sob um disfarce de patriotismo que expressa ódio e intolerância contra forasteiros que pensam de forma diferente e clama pela sua exclusão.
Por outro lado, observa, a “política de identidade de esquerda” se baseia na reivindicação de “igualdade” que visa a lutar pelos direitos de igualdade (política, econômica e social) das minorias e é uma resposta ao que se denomina “experiência de discriminação”. Thierse se refere ao fenômeno da “cultura do cancelamento” na sociedade alemã, que está se espalhando no meio acadêmico, levando muitas vezes à exclusão das universidades de pessoas que têm opiniões “divergentes” e não usam uma linguagem que “politicamente correta”, ou “regulamentada”. Na realidade, isto é contrário a qualquer cultura democrática. O absurdo é que não são os “argumentos racionais” que dominam o debate, mas a “origem” ou condição social, que decidem o que é “correto”. Ele comenta a disseminação de uma ideologia que se opõe à “supremacia branca” e usa o mito de algum tipo de “culpa hereditária”. Assim, quem é “branco” é “culpado”. Quando professores universitários têm que usar de toda cautela ao se dirigirem aos seus alunos – por exemplo, usando uma fórmula como, “Bom dia, Senhora, Senhor, Humano, Diversos etc.” -, isto deixa de ser algo inofensivo, afirma Thierse.
Para Thierse, o que vemos agora é “uma nova forma de iconoclastia”: a erradicação de nomes, a derrubada de estátuas e monumentos (como a estátua de Cristóvão Colombo em San Francisco, em 2020), as denúncias sobre gigantes intelectuais etc. O que vemos são “atos simbólicos de libertação” de uma história “maléfica” perturbadora, onde a “preocupação subjetiva” conta mais que o nome de uma estátua ou filósofo. Visto que vivemos em uma sociedade de pluralidade étnica, cultural e religiosa, Thierse pede um “debate profundo” na sociedade, que se concentre naquilo que é a “base comum de valores” que mantêm a sociedade unida. A sociedade não pode funcionar “se grupos isolados insistirem em suas diferenças, em suas ‘identidades’ específicas, mas devemos nos esforçar para ver o que é comum em relação às ideias de liberdade, justiça, normas culturais, tradição e memórias históricas”.
Em uma entrevista à rádio DLF, em 26 de fevereiro, Thierse disse que seu artigo havia produzido uma “tempestade de merda” e “hashtags” de homossexuais e lésbicas. Entre outras expressões, ele foi chamado de “velho branco com orientação heterossexual”. Contra ele, levantou-se a teórica de gênero da Universidade de Trier, Andrea Geier, também chefe do Centro de Estudos de Gênero e Pós-coloniais, que defendeu um debate muito mais “orientado para o gênero” e “sensível ao gênero” na Alemanha.
Em março de 2019, a Associação da Língua Alemã (VDS, sigla em alemão), com 36 mil membros, publicou um manifesto que foi assinado por 73 mil pessoas, incluindo proeminentes pesquisadores do idioma, escritores, poetas, políticos, diplomatas e jornalistas. Essencialmente, o documento afirma que a chamada “linguagem correta de gênero” se baseia em um “erro geral”, o de que haveria uma conexão entre o sexo biológico e o gênero gramatical (em alemão, leão-Der Löwe é masculino, girafa-Die Giraffe é feminino e cavalo-Das Pferd é neutro). Os signatários afirmam, ainda, que a linguagem “de gênero” gera uma variedade de “construções linguísticas ridículas”, por exemplo, o uso dos particípios verbais para evitar qualquer gênero explícito. Para piorar, afirmam, “tais distorções de linguagem sequer ajudam as mulheres a conquistar mais direitos”. Na Constituição Federal alemã, observam, há 20 referências à posição de “chanceler federal” no masculino (Bundeskanzler), o que “não impediu as múltiplas eleições de Angela Merkel à posição” que passou a ser tratada no feminino (em alemão, ao contrário do português, a palavra tem a forma feminina Kanzlerin), o que tampouco “criará problemas para uma possível nova chanceler”.
O manifesto conclui clamando por uma resistência massiva contra tais “absurdos de gênero”, que, no entanto, têm conquistado posições na mídia alemã.
Traição da herança filosófica da Civilização Ocidental
Atualmente, na Alemanha e nos EUA, quem domina o uso da linguagem humanista clássica e acredita nos princípios clássicos da arte e da busca da verdade baseados no método do “diálogo” de Platão, é visto como “racista”, alguém que se identifica com a filosofia de “homens brancos mortos”. Um destes é, por exemplo, o filósofo grego Platão, que em sua conhecida obra “A República” fez uma crítica magistral daquilo que é a base para a iconoclastia de hoje: a arte dos sofistas, em realidade, uma seita que, na época de Platão, reunia os mais fervorosos inimigos do método dialético de Sócrates. Entre eles, destacava-se Trasímaco, um ferrenho inimigo pessoal de Platão e de seu método dialético.
Na República (Livro 1), Trasímaco proclama que “a justiça é o interesse do mais forte”, lema praticado, séculos depois, pelo jurista pró-nazista Carl Schmitt e por toda sorte de autocratas. Em sua obra, Platão demonstra que os sofistas eram os verdadeiros inimigos de seu amado mestre Sócrates. Foram eles que organizaram o julgamento que concluiu com uma sentença de morte contra ele, acusando-o de corromper os jovens com a rigorosa aplicação do seu método dialético de pensamento. De forma característica, os sofistas preferiam emitir meras “opiniões” a empenhar-se na busca pela verdade. Em seu diálogo, Platão mostrou que, em uma sociedade regida pelos sofistas, tudo é arbitrário, em nome da “democracia”, e cada um faz o que lhe agrada.
Na Alemanha de hoje, alguns dos mais fervorosos defensores da sociedade “de gênero” podem ser encontrados entre partidários do Partido Democrático Liberal (FDP) e do Partido Verde. Uma de suas façanhas é um projeto de lei pelo qual cada indivíduo pode escolher o “gênero” que deseja ter, a partir dos 14 anos, sem consentimento dos pais, ou seja, se quer ser homem, mulher, gay, lésbica, transsexual, bissexual ou diverso, para citar apenas algumas das categorias usadas para definir a sua “orientação sexual” ou a “verdadeira identidade”.
Publicado em Portal Bonifácio em 22.03.2021.
Parei de ler nos “filósofos brancos mortos” Platão e Aristóteles… Realmente, os filósofos da new-left sionista-identitária são muitos superiores a esses dois coitadinhos irrelevantes.