
Por Felipe Quintas.
Virou um lugar comum, em muitos países, inclusive o Brasil, dizer que “a esquerda perdeu o referencial com o fim da URSS”.
Mas isso é um absurdo.
Na maioria dos países capitalistas durante a Guerra Fria, as principais forças de esquerda não tinham nada a ver com a URSS, pelo contrário, em geral eram anticomunistas até o talo. Não era raro, inclusive, terem uma origem em bases religiosas e em muitos aspectos conservadoras: o Trabalhismo Inglês e a Social-democracia Sueca deviam mais a movimentos populares protestantes de cunho corporativista que ao marxismo, bem como o Trabalhismo Brasileiro e o Justicialismo argentino beberam muito da Doutrina Social da Igreja e quase nada, para não dizer nada, do marxismo.
O que aconteceu foi que, com o fim da URSS e a disseminação da ideologia do “fim da história”, os segmentos mais venais dos partidos de esquerda se sentiram mais à vontade para chutar fora as bases sindicais e cooperativistas dos seus partidos e se aliar ao capital financeiro em ascensão para repartir o butim das privatizações e das desregulamentações neoliberais em curso desde a década anterior. Não é que com o fim da URSS se perdeu o referencial, se perdeu foi a vergonha.
A China, cuja revolução socialista foi em grande parte a continuação da “Grande Marcha ao Oriente” da Revolução Russa, não perdeu nenhum referencial com o fim da URSS, pelo contrário, soube, magistralmente, criar o seu próprio e adaptar a estratégia socialista à globalização comercial puxada inicialmente pelos EUA – agora liderada por ela. A bem da verdade, a China já vinha fazendo isso desde a década de 1980, então ela, filha da revolução russa, não sentiu praticamente nada o fim da URSS, o que ainda a ajudou ao liberar muitos “mercados” para a sua expansão.
De resto, uma esquerda não-soviética que realmente tinha como referencial a URSS tinha mais que acabar mesmo. Todo país tem seus heróis, mártires e modelos, que devem ser honrados e homenageados pelas respectivas forças políticas nacionais – Getúlio Vargas no Brasil, José Martí em Cuba, Simón Bolívar na Venezuela, Lázaro Cárdenas no México etc. Mas se o referencial supremo da dita força de esquerda estava em outro país, então ela não servia ao seu próprio, era um corpo estranho à realidade que pretendia governar. Isso não quer dizer que a URSS não tenha alcançado grandes realizações e que não seja necessário estudar esse país para obter uma visão mais ampla do planejamento e do desenvolvimento.
As experiências internacionais podem e devem ser estudadas, compreendidas e, se possível e adequado, devidamente traduzidas e incorporadas. Mas daí a criar uma dependência político-ideológica vai uma distância muito grande.