Por Thierry Meyssan.
As Forças Armadas dos EUA
1- Os anglo-saxões têm um inimigo hereditário: os russos. Para eles são pessoas desprezíveis, destinados desde Oto I (século X) a não ser mais do que escravos, tal como o seu nome indica (“slave” significa em inglês ao mesmo tempo tanto a etnia como o escravo). No século 20, eles eram contra a URSS, supostamente porque ela era comunista, e agora são contra a Rússia sem razão aparente.
2- Segundo adversário, inimigos que eles próprios fabricaram dedicando-lhes uma « guerra sem fim » desde o 11 de Setembro de 2001 : as populações do Oriente Médio Alargado, das quais eles destroem sistematicamente a organização do Estado, sejam eles aliados ou inimigos, a fim de os “atirar para Idade da Pedra” e explorar as riquezas da sua região (estratégia Rumsfeld/Cebrowski).
3- Terceiro inimigo : a China cujo desenvolvimento econômico ameaça relegá-los para uma segunda posição. Não há a seus olhos outra escolha que não seja a guerra. É pelo menos o que pensam os seus politólogos que falam mesmo da “Armadilha de Tucídides” em referência à guerra que Esparta lançou a Atenas, assustada pelo aumento do seu poderio [1].
4- As questões do Irã e da Coreia do Norte não seguem as três primeiras senão de longe.
A Estratégia provisória de Segurança Nacional de Joe Biden [2] ou a Avaliação anual de riscos [3] da sua comunidade de Inteligência não cessam de repetir isto sob diferentes ângulos.
Travar três guerras ao mesmo tempo é extremamente difícil. O Pentágono busca atualmente a maneira de hierarquizar estas prioridades. Ele apresentará o seu relatório em Junho. Um sigilo absoluto envolve a comissão encarregada desta avaliação. Ninguém conhece sequer os seus membros. Ainda assim, sem esperar, a Administração Biden foca-se contra a Rússia.
Quer sejamos independentes ou enfeudados ao «Império Americano», devemos parar de nos forçar a não querer ver. Os Estados Unidos da América apenas têm como objetivo destruir a cultura russa, as estruturas estatais árabes e —a termo— a economia chinesa. Isso não tem absolutamente nada a ver com a legitima defesa do seu povo.
Não há outro modo de explicar por que é que os Estados Unidos gastam somas astronômicas com seus exércitos, sem qualquer relação com os orçamentos daqueles que descrevem como os seus «amigos» ou «inimigos». De acordo com o Institute for Strategic Studies (Instituto de Estudos Estratégicos-ndT) de Londres, o seu orçamento militar é pelo menos igual à soma dos outros quinze Estados mais bem armados [4]
Os temas de confronto com a Rússia
Os Estados Unidos estão inquietos com a recuperação da Rússia. Depois de ter tido uma queda brutal da sua esperança de vida entre 1988 e 1994 (5 anos a menos), ela recuperou, ultrapassando depois largamente a que tinha na era soviética (12 anos a mais), mesmo que a sua esperança de vida saudável continue uma das mais baixas da Europa. A sua economia diversifica-se, particularmente no domínio agrícola, embora continue dependente das exportações energéticas. O seu Exército renovou-se, o seu complexo industrial-militar é mais eficiente que o do Pentágono e ela ganhou experiência na Síria.
Para Washington, a construção do “pipeline” Nord Stream 2 ameaça libertar a Europa Ocidental da sua dependência do petróleo dos EUA. Enquanto a união da Crimeia à Federação da Rússia, e mesmo a possível do Donbass, desferem, pelo menos parcialmente, um golpe na dependência da Ucrânia ao Império Americano (a Crimeia e o Donbass não são de cultura ocidental). Por fim, a presença militar russa na Síria freia o projeto de destruição política de todos os povos dessa região.
“Quando se quer afogar o cão, diz-se que ele têm raiva”
Foi, sem dúvida alguma, o Presidente Biden quem abriu as hostilidades qualificando o Presidente russo de “assassino”. Jamais as duas potências haviam trocado injúrias, mesmo na época do Gulag. O seu interlocutor respondeu-lhe polidamente e propôs-lhe debater o assunto publicamente, o que ele recusou.
Os Estados Unidos têm uma visão do mundo apenas de curto prazo. Não se consideram responsáveis pela sua herança. Segundo eles, os malvados russos reuniram mais de 100.000 homens junto à Ucrânia e prestam-se a invadi-la, como os Soviéticos fizeram na Polônia, na Hungria e na Checoslováquia. Ora, não se tratava da Rússia, mas da URSS; não da doutrina Putin, mas, sim da doutrina Brejnev; e o próprio Leonid Brejnev não era russo, mas ucraniano.
Os russos, pelo contrário, têm uma visão do mundo a longo prazo. Segundo eles, os bárbaros norte-americanos puseram em causa o equilíbrio de forças a seguir aos atentados do 11 de Setembro de 2001. Imediatamente após, em 13 de Dezembro de 2001, o Presidente Bush anunciou a retirada dos Estados Unidos do Tratado Antimísseis (Tratado ABM). Depois, os Estados Unidos fizeram entrar na OTAN, um por um, quase todos os antigos membros do Pacto de Varsóvia e da URSS, em violação da sua promessa quando da dissolução desta. Esta política foi confirmada pela Declaração de Bucareste, em 2008 [5].
Todos conhecem a peculiaridade da Ucrânia: a Ocidente uma cultura ocidental, a Leste uma cultura russa. Durante uma quinzena de anos, o país estava politicamente congelado, até que Washington organizou uma pseudo-revolução e colocou as suas marionetes, no caso neonazis, no Poder [6]. Moscou reagiu com bastante rapidez para que a Crimeia declarasse a independência e se unisse à Federação da Rússia, mas hesitou quanto ao Donbass. Desde então, distribuiu passaportes russos a todos os habitantes desta região ucraniana da qual ela é a única esperança.
A Administração Biden
O presidente Biden era conhecido, quando era senador, por apresentar ao Senado propostas legislativas elaboradas pelo Pentágono. Como Presidente, rodeou-se de personalidades neoconservadoras. Não nos cansamos de repetir: os neoconservadores eram militantes trotskistas que foram recrutados pelo Presidente republicano Ronald Reagan. Desde então, eles permaneceram sempre no Poder, exceto durante o parênteses do Presidente jacksoniano Donald Trump, mudando-se do Partido Republicano para o Partido Democrata e vice-versa.
Durante a « revolução » colorida do Maïdan (2013-14), Joe Biden, então vice-presidente, tomou partido pelos neonazis que eram agentes das redes stay-behind da OTAN [7]. Ele dirigiu as operações com uma das assistentes do Secretário de Estado da época, Victoria Nuland (cujo marido, Robert Kagan, é um dos fundadores do Project for a New American Century, o órgão de coleta de fundos do republicano George W. Bush). O Presidente Biden decidiu fazê-la adjunta do seu novo Secretário de Estado. Ela apoiara-se no então embaixador dos Estados Unidos em Kiev, Geoffrey Pyatt, agora colocado em Atenas (Grécia). Quanto ao novo Secretário de Estado do Presidente Biden, Antony Blinken, ele é juiz e parte devido à origem ucraniana pelo lado da sua mãe. Muito embora tenha sido criado em Paris pelo segundo marido desta, o advogado Samuel Pisar (conselheiro do Presidente Kennedy), ele assumiu também as ideias neoconservadoras.
A preparação do confronto com a Rússia
A meio de Março de 2021, os Estados Unidos organizaram com os seus parceiros da OTAN as manobras Defender-Europe 21. Estas prolongaram-se até Junho. Tratou-se de retomar o mega exercício Defender-Europe 20 que havia sido reduzido e abreviado devido à epidemia de Covid-19. Foi uma movimentação gigantesca de homens e de material para simular um confronto com a Rússia. Estas manobras foram associadas a um exercício de bombardeiros nucleares na Grécia, em presença do embaixador Geoffrey Pyatt citado mais acima.
Em 25 de Março, o Presidente Volodymyr Zelensky publicava a nova Estratégia de Segurança ucraniana [8], três semanas após o Presidente Joe Biden ter publicado a dos Estados Unidos.
Respondendo à OTAN, a Rússia empreendia as suas próprias manobras junto à sua fronteira ocidental, inclusive junto a sua fronteira com a Ucrânia. Ela despachou mesmo tropas suplementares para a Crimeia e até para a Transnístria.
Em 1 de Abril, o Secretário da Defesa dos EUA telefonava ao seu homólogo ucraniano a propósito de um possível reforço da tensão com a Rússia [9]. O Presidente Volodymyr Zelensky emitia então uma declaração na qual assegurava vigiar as manobras russas que poderiam ser provocações [10].
Em 2 de Abril, o Reino Unido organizava uma reunião dos ministérios da Defesa e das Relações Exteriores britânico-ucranianos, sob a iniciativa do Ministro britânico Ben Wallace [11] (que esteve muito ativo no conflito do Nagorno-Karabakh [12]).
Em 2 de Abril, o Presidente Joe Biden apelava ao seu homólogo ucraniano para lhe garantir o seu apoio face à Rússia. Segundo o Atlantic Council, ter-lhe-ia anunciado a decisão de lhe fornecer uma centena de aviões de combate (F-15, F-16 e E-2C) atualmente sediados na base aérea de Davis-Monthan [13].
Em 4 de Abril, o Presidente da Comissão das Forças Armadas da Câmara dos Representantes, o Democrata Adam Smith, negociava com parlamentares ucranianos fortes subvenções ao Exército ucraniano em troca do compromisso ucraniano contra o gasoduto Nord Stream 2 [14].
Em 5 de Abril, o Presidente Volodymyr Zelensky fazia uma visita ao Catar. Oficialmente, tratava-se de desenvolver as relações comerciais. O Catar é o principal fornecedor de armas aos jiadistas e, segundo as nossas informações, a questão do possível financiamento de combatentes foi levantada. O Director-geral do fabricante militar Ukroboronprom, Yuriy Gusev, fazia parte da comitiva. Fora ele quem fornecera armas ao Daesh (E.I.) a ordens do Catar [15].
Em 6 de Abril, a Lituânia que, no passado protegia a parte ocidental da Ucrânia no seu próprio império, inquiriu sobre a situação militar [16].
Nos dias 6 e 7 de Abril, o General britânico Sir Stuart Peach, presidente do Comité Militar da OTAN, viajou para a Ucrânia a fim de especificar as reformas necessárias para que o país possa aderir à OTAN [17].
Em 9 de Abril, em conformidade com a Convenção de Montreux, o Pentágono informou a Turquia da sua intenção de fazer transitar navios de guerra pelos estreitos de Dardanelos e do Bósforo.
Em 10 de Abril, o Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, recebeu o seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, em Istambul, no quadro de consultas regulares entre as duas nações [18]. Perante o cheque bancário do Catar, a Turquia, membro da OTAN, iniciou imediatamente o recrutamento de jihadistas internacionais na Síria para os enviar a combater no Donbass ucraniano. Instrutores militares turcos foram igualmente enviados para o porto ucraniano de Mariupol, quartel-general da Brigada Islâmica Internacional [19], criada pelo Presidente Erdoğan, e o seu homólogo ucraniano de então, com Tártaros fieis a Washington contra a Rússia.
Segundo tal lógica, a Federação da Rússia juntava as suas tropas na fronteira ucraniana. Assim os seus parceiros da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) questionaram-na quanto às suas manobras. Ao que a parte russa respondeu apenas de maneira evasiva. Ora, o Documento de Viena (1999) obriga os membros da OSCE a fornecerem uns aos outros todas as indicações sobre os movimentos de suas tropas e dos seus equipamentos. Mas sabe-se que os Russos não funcionam como os Ocidentais. Eles jamais informam o seu povo ou os seus parceiros no decurso de uma operação, apenas quando as suas movimentações estão concluídas.
Dois dias mais tarde, o G7 emitia um comunicado inquietando-se com os movimentos russos, mas ignorando os da OTAN e da Turquia. Felicitava-se pela contenção da Ucrânia e pedia à Rússia para «pôr um termo às suas provocações» [20].
Em 13 de Abril, por ocasião da reunião dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da OTAN com a Comissão Ucrânia/OTAN, os Estados Unidos lançaram a sua grande jogada. Todos os aliados —dos quais nenhum desejava morrer só porque os Ucranianos não conseguem divorciar-se pacificamente— foram instados a dar o seu apoio a Kiev e a denunciar a “escalada” da Rússia [21]. O Secretário de Estado, Antony Blinken, entrevistou-se longamente com o seu homólogo ucraniano, Dmytro Kouleba [22]. Caminhava-se inexoravelmente para a guerra.
Subitamente, o Presidente Joe Biden distendia a atmosfera telefonando ao seu homólogo russo, Vladimir Putin. Propunha-lhe agora um encontro, na forma de reunião de cúpula, depois de antes ter rejeitado desdenhosamente a proposta de um debate público quando o havia insultado [23]. Depois desta iniciativa, a guerra parecia evitável.
Em 14 de Abril, Antony Blinken, convocou pois os seus principais aliados (Alemanha, França, Itália e o Reino Unido) a fim de os mobilizar [24].
Em 15 de Abril, o Presidente Joe Biden deu a sua visão do conflito, expulsou dez diplomatas russos [25]. Ele decretou sanções contra a Rússia, acusada não só de ter truncado as eleições para fazer eleger o Presidente Donald Trump, mas também de ter oferecido prêmios pelo assassinato de soldados dos EUA no Afeganistão ou ainda de ter atacado os sistemas informáticos federais através de um servidor da SolarWinds.
De forma previsível, a Rússia expulsou um número idêntico de diplomatas americanos. Além disso, ela montou uma armadilha a um diplomata ucraniano que deteve em flagrante delito de espionagem, com documentos classificados como Segredo de Defesa em mãos.
Prosseguindo no seu ímpeto, o Presidente Volodymyr Zelensky foi então ao encontro dos seus homólogos da França e da Alemanha, o Presidente Emmanuel Macron e a Chanceler Angela Merkel. Embora deplorando a escalada russa e não cessando de reafirmar o seu apoio moral à integridade territorial da Ucrânia, os seus dois interlocutores mostraram-se evasivos sobre a sequência dos acontecimentos. Em resumo, se os Estados Unidos e a Rússia devem reunir-se e debater, é um bocado cedo para alguém morrer por Kiev.
Referências:
[1] Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap?, Graham Allison, Houghton Mifflin Harcourt (2017).
[2] Interim National Security Guidance, White House, March 3, 2021. “A estratégia de Segurança Nacional do Presidente Biden”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 6 de Abril de 2021.
[3] Annual Threat Assessment of the US Intelligence Community, Director of National Intelligence, April 9, 2021.
[4] The Military Balance 2021, Institute for Strategic Studies, Routledge (2021).
[5] «Déclaration du Sommet de l’Otan à Bucarest», Otan, 3 avril 2008.
[6] “Quem são os nazis no governo ucraniano?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 5 de Março de 2014.
[7] Les Armées Secrètes de l’OTAN, Danièle Ganser, Ed. Demi-Lune (2003). Disponível como um episódio em espanhol em Voltairenet.org.
[8] Decreto Presidencial 121/2021.
[9] “Readout of Secretary of Defense Lloyd J. Austin III’s Call With Ukrainian Minister of Defence Andrii Taran”, US Department of Defense, April 2, 2021.
[10] “Zelensky on Russian troops near border: Ukraine is ready for any provocations”, Ukrinform, April 2, 2021.
[11] “UK defense secretary initiates talks with Taran due to escalation in eastern Ukraine”, Ukrinform, April 2, 2021.
[12] “Alto Carabaque : vitória de Londres e de Ancara, derrota de Soros e dos Arménios”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 24 de Novembro de 2020.
[13] “U.S. Should Provide Lend-Lease Type of Aid Package for Ukraine to Help it Upgrade its Air Force – Atlantic Council”, Defense Express, April 7, 2021.
[14] “Arakhamiya, Congressman Smith discuss expanding military support for Ukraine”, Ukrinform, March 5, 2021.
[15] «Qatar y Ucrania acaban de entregar misiles antiaéreos Pechora-2D al Emirato Islámico », por Andrey Fomin, Oriental Review (Rusia) , Red Voltaire , 23 de noviembre de 2015.
[16] “Ukrainian, Latvian defense ministers discuss security situation on Ukraine’s borders”, Ukrinform, April 7, 2021.
[17] «Visite du président du Comité militaire de l’OTAN en Ukraine», Otan, 6 avril 2021.
[18] “A Turquia recruta jihadistas para os enviar à Ucrânia”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 19 de Abril de 2021.
[19] «Ucrania y Turquía han creado una brigada internacional islámica contra Rusia», por Thierry Meyssan, Red Voltaire , 15 de agosto de 2015.
[20] « Déclaration du G7 sur l’Ukraine », Réseau Voltaire, 12 avril 2021.
[21] « La Commission OTAN-Ukraine se penche sur l’état de la sécurité en Ukraine », Réseau Voltaire, 13 avril 2021.
[22] « Rencontre d’Antony Blinken et Dmytro Kouleba », États-Unis (Department of State) , Réseau Voltaire, 13 avril 2021.
[23] «Conversación telefónica entre Joe Biden y Vladimir Putin», Red Voltaire , 13 de abril de 2021.
[24] « Conversation téléphonique entre Joe Biden et Vladimir Poutine », États-Unis (White House), Réseau Voltaire, 13 avril 2021.
[25] “Remarks on Russia”, by Joseph R. Biden Jr., Voltaire Network, 15 April 2021.