
Por Carlos Velasco.
A partir do pouco que sabemos é possível, recorrendo a analogias históricas e do conhecimento do modus operandi das várias elites do poder, fazer algumas especulações a respeito do que realmente se passa na zona do Dnieper. Levando em conta que se trata de uma situação em desenvolvimento, resolvi fazer uma lista de notas que podem fornecer subsídios aos leitores.
1 – O Ocidente deseja exercer pressão máxima na Rússia, diminuindo a capacidade de resposta do Kremlin por meio de uma estratégia de saturação.
2 – A classe dominante da Ucrânia não tem nada a perder, e muito a ganhar. A guerra fornecerá pretexto para um aumento do controle social. Putin, se agir militarmente, fará uma ação limitada e não anexará as áreas em questão. Optará, provavelmente, pelo apoio à independência das zonas em disputa. A anexação seria politicamente negativa para o Kremlin e reforçaria a narrativa da agressão russa na opinião pública ocidental. A Ucrânia, se perder estas áreas, acredita que poderá entrar para a OTAN, e ganhará uma carta para as futuras negociações com a Rússia, podendo exigir mais contrapartidas para servir como “amortecedor” nas relações com o Ocidente.
3 – Economicamente, não interessa à França e à Alemanha uma ruptura política com a Rússia a curto prazo, mas ao mesmo tempo a crise reforça a sua posição política tanto em relação a esta, como em relação aos EUA. Ou seja, a crise permanente entre Moscou e Washington reforça o papel de Berlim e Paris como intermediários entre a OTAN e a Rússia.
4 – Quanto à China, é aliada da Rússia, mas ganharia com o agravamento da crise pois isto reforçaria a sua posição em relação à Rússia e, no caso de haver corte nos fornecimentos de gás para a EU, aumenta a disponibilidade deste para si, diminuindo custos. O seja, economicamente traz benefícios e ao mesmo tempo reforça o processo de “satelitização” da Rússia pela China.
5 – Quanto aos EUA, isso reforça a percepção europeia de que a OTAN, militarmente, significa EUA.
6 – No caso da União Europeia, ajuda a desviar as atenções do público da crise do COVID, e das escolhas políticas favorecidas por Bruxelas, para a crise da Ucrânia, diminuindo o embaraço causado diante do aumento da percepção popular de que houve exagero na resposta e flerte com o autoritarismo.
7 – A Polônia ganha com a crise, pois isso reforça o medo da sua população e justifica o incremento dos gastos militares, já em curso, para além de reforçar o apelo político da sua estratégia geopolítica de longo prazo, o Intermarium (Międzymorze).
8 – Sendo assim, podemos concluir que o único elemento estabilizador na crise é Moscou. À Washington, Bruxelas, Paris, Berlim e Pequim interessa a manutenção da tensão máxima, porém, se Moscou agir militarmente, pode haver erro de cálculo de algum ator. O que fará Putin no caso de ficar sem opções devido a um possível embaraço na política externa, a maior fonte de legitimidade do seu governo?
Mais uma vez, fica clara a necessidade de uma grande conferência internacional para lidar com os problemas colocados pela falta de um acordo sobre as esferas de influência, e pelos novos desenvolvimentos tecnológicos militares. Mas estarão os atores com ambições globais ou em ascensão dispostos a limitar a sua ação? No caso da China, creio que sim. As elites chinesas são pragmáticas, pacientes e bastante cientes da sua força relativa. No caso do Ocidente, onde a maior parte da classe dominante, devido à percepção limitada pela “vida palaciana” e/ou pela pressão da “solidariedade de classe” (lembrem como este último fator foi fundamental para a reação mesquinha, violenta e estúpida das elites patrícias romanas aos problemas sociais levantados pelas guerras na Hispania após a Segunda Guerra Púnica), me parece que terá de haver uma derrota política das classes que poderíamos, de forma resumida e um bocado simplista, englobar sob o rótulo “elite euro-atlântica”.
Quanto ao Brasil, é urgente que se prepare. Na verdade, deveríamos ter começado a preparar a nação para o pior há, pelo menos, 20 anos. Uma das hipóteses abertas para o futuro é um grande acordo entre as grandes potências em que a América do Sul e a África subsaariana sejam o objeto passivo de uma reedição do Tratado de Berlim. Se o Brasil quiser manter a neutralidade, ou sentar à mesa dos grandes, terá de se preparar militarmente.