
Por Carlos Velasco.
Recomendo a todos o vídeo recentemente divulgado pelo Canal Arte da Guerra, produzido pelo investigador Felipe Quintas, sobre a Questão do Pirara:
Aproveitando este excelente trabalho, desejo partilhar algumas reflexões, contribuindo com subsídios para um debate que é fundamental para o futuro do Brasil. Tentarei ser breve e não repetir o que o investigador Felipe Quintas já assinalou tão brilhantemente. Em primeiro lugar, desejo lembrar um ponto importante. A Amazônia, desde os primórdios disputada entre as grandes potências coloniais europeias, a saber, Espanha, Inglaterra, França, Holanda e Portugal, foi conquistada para o Brasil fundamentalmente devido ao domínio que a Coroa Portuguesa estabeleceu sobre a Foz do Amazonas, controlando a sua navegação. O Forte do Castelo de Belém e a Fortaleza de São José de Macapá são lembranças permanentes deste fato histórico incontestável (ao menos até o dia em que identitários os dinamitem por representarem a opressão do patriarcado…).
Houve uma primeira tentativa inglesa de se sondar a presença e a capacidade de defesa dessa posição por parte da Coroa Portuguesa, na verdade, já uma Coroa Brasileira, em 1810-11, justamente no território que seria palco da Questão do Pirara. Mas então havia a ocupação da área por guarnições militares. Alçado o Brasil à condição de Império do Brasil em 1822, começa um período de instabilidade que vai durar quase trinta anos. Aproveitando-se dessas dificuldades [1], Londres voltou a sondar a área, enviando missões “científicas” e “humanitárias”. Diante da pressão britânica numa altura de fraqueza interna resultante da divisão, a diplomacia brasileira conseguiu a neutralização do território em disputa, em troca da inclusão na zona contestada de áreas que davam acesso à Bacia do Amazonas através do Rio Tacutu e do Rio Maú. Levando em conta a situação desesperada da época, foi o possível.
A questão seria reaberta em força após a Proclamação da República, num novo período de instabilidade no Brasil [2]. Na verdade, a questão volta à pauta devido ao pretexto fornecido por uma visita do governador do Pará à região em disputa em 1888, evento que levantou protestos dos ingleses, ganhando força nos anos 1890. Não podemos também esquecer a ocupação da Ilha de Trindade (1895-6) pelos mesmos. Por iniciativa do próprio governo brasileiro, pressionado sobretudo pela França na Questão do Amapá, reaberta com a invasão militar francesa de 1895, fomos obrigados a sinalizar aos ingleses a disposição para a negociação de um tratado definitivo. Rio Branco identificou, com razão, maior perigo na França, e por isso desejou fazer rapidamente um acordo separado de fronteiras com a Holanda (Suriname) e com o Reino Unido (Guiana), de modo a evitar que estes se juntassem a Paris numa pressão conjunta. Com a Holanda, logo se chegou a um acordo. Com o Reino Unido, o desentendimento acabou por levar à decisão de se recorrer arbitragem. Apesar da qualidade da diplomacia brasileira, herdeira da tradição de Alexandre de Gusmão, a Questão do Pirara teve um desfecho desfavorável ao Brasil.

Não por falta de razão da nossa parte, e nem por culpa da nossa diplomacia (os documentos estão disponíveis para quem quiser estudar a questão), mas sim devido ao fato do Reino de Itália, em meio a uma grave crise econômica, que o tornou fortemente dependente da banca inglesa e despoletou uma inflexão da sua política externa (bem expresso na evolução do filo-germanismo de Crispi para o filo-anglicismo de Giolitti, movimento motivado também pelo desastre da Guerra Ítalo-Etíope), de desejar agradar ao Reino Unido a todo o custo. Fica disso uma lição: a melhor e mais confiável garantia de defesa de um Estado é a própria força e não o direito internacional.
Apesar do Reino Unido não ter ganho todo o território em disputa, adquiriu acesso fluvial à Bacia do Amazonas, enquanto o Brasil amazônico perdeu a ligação ao Atlântico, pelo Rio Essequibo. Não é coisa pouca e não é preciso ser um grande estrategista para se compreender a relevância dessa mudança no tabuleiro.
Mas a importância dessa derrota, e das suas possíveis implicações, não se esgota aqui. Cabe lembrar uma outra questão contemporânea, a Questão do Acre, uma zona ocupada de facto por seringueiros brasileiros que o governo boliviano, incapaz de exercer a sua soberania, “privatizou” para um “fundo de investimento” anglo-americano. Como todos sabemos, o Brasil ganhou a questão, e nisso a sagacidade do Barão do Rio Branco foi essencial. Ao lado das manobras militares no terreno, e das manobras políticas, ele abriu um canal de comunicação com os “investidores” anglo-americanos (inclusive um, inglês, que não posso citar), indo direto ao assunto e acertando o pagamento de uma indenização aos cavalheiros. Isso amaciou os ânimos tanto em Londres quanto em Washington. O Barão conseguiu, por um preço que considero módico, salvar o Brasil. Exagero? Vejamos.
Se o Bolivian Syndicate tivesse alcançado o seu objetivo, a consequência seria a abertura do Rio Amazonas à navegação internacional e, a médio/longo prazo, a formação de um “estado” anglófono no seio da Amazônia. Não faltariam aventureiros para isso e também não faltaria, se fosse preciso, um “Alamo” [3]. Juntem isso à voracidade francesa, à força britânica, à fraqueza militar brasileira, ao oportunismo americano e à avareza batava, para além do já citado recém-obtido acesso à Bacia do Amazonas pelos ingleses da Guiana, no auge da era do colonialismo industrial inaugurado na Conferência de Berlim de 1885 (que não poupou nem “Estados Brancos”, como no caso dos boeres, na África do Sul), para terem uma ideia do que aconteceria, pelo menos, à Calha Norte do Amazonas. O Congo Belga, as concessões ocidentais nos portos chineses e as várias plantations inundadas por coolies dão uma ideia de como seria o cenário. Tantas grandes fortunas deixaram de ser feitas por empreendedores com espírito de iniciativa! Joseph Conrad teria escrito mais uns quantos bons romances e hoje, com certeza, teríamos mais fundações bilionárias interessadas no progresso da humanidade… Brasil, sempre estragando os planos dos visionários!
Quanto à opinião pública mundial, que já contava no cenário político, relembremos o que se passou no já mencionado Reino de Itália que em 1902, com o Decreto Prinetti, proibiu a emigração subsidiada para o Brasil, aproveitando como pretexto as condições de trabalho dos colonos italianos nas lavouras paulistas, um duro golpe na então combalida agricultura brasileira, e a campanha de demonização dos espanhóis que antecedeu a agressão americana de 1898, para termos uma ideia do tipo de propaganda que moveriam contra o Brasil, com o agravante deste ter abolido a escravatura há poucos anos (ainda que os coolies dos ingleses, franceses e holandeses nutrissem dúvidas a este respeito).
O perigo sobre a Amazônia não é apenas um perigo presente, ou fugaz, mas sim uma realidade histórica multissecular inerente ao processo de formação do Brasil. E como não poderia ser? Territórios muito menos promissores foram alvo da cobiça dos grandes poderes internacionais e estes, a História também ensina, jamais limitaram as suas ações às regras por eles próprios estabelecidas quando a sua força o permitiu. A grande lição a tirar é que o Brasil foi, é e sempre será atacado quando estiver fraco e desunido e a Amazônia é o alvo prioritário. A Amazônia é a chave do Brasil para ser uma grande potência mas ao mesmo tempo, ao menos enquanto não for completamente integrada à nação, é seu o ventre mole. Está mais do que na hora de ganharmos musculatura!
Notas:
[1] Entre as mais significativas ameaças à integridade e estabilidade do império, cito a Guerra da Cisplatina (1815-1828), a Cabanada (1832-1835), a Cabanagem (1835-1840), a Revolução Farroupilha (1835-1845), a Sabinada (1837-1838), a Balaiada (1838-1841) e as Revoltas Liberais de São Paulo e Minas Gerais em 1842.
[2] Revoltas da Armada 1891/1893-4, Revolução Federalista 1893-1895, Guerra de Canudos 1896-97, Encilhamento e Funding Loan.
´[3] A Batalha de Alamo, em 1836, colocou o exército mexicano contra uma força de colonos texanos, dando origem a uma guerra de independência do Texas, e, posteriormente, a sua incorporação aos Estados Unidos da América.
É como eu sempre digo e volto a repetir: Império Britânico,o maior inimigo da Humanidade.