Por Carlos Velasco
Escolhi para título do artigo o famoso conceito de Clausewitz, que tomei a liberdade de traduzir como fumo da guerra. Este conceito, em termos resumidos e simplórios, descreve a incerteza inerente a qualquer batalha, ou guerra, por melhor e mais vasta que seja a inteligência à disposição do(s) comandante(s).
As lideranças americanas, russas e chinesas, com imensos recursos a serviço da recolha, seleção e interpretação de informação, estão nessa posição (e as elites em geral). Agem num quadro de incerteza relativa, não podendo perder a iniciativa e num quadro de tempo limitado de resposta, sendo muitas vezes obrigadas a tomar decisões baseadas em especulações e a agir amparadas pelo instinto, ainda que aguçado pela experiência. No fundo estão aceitando riscos calculados, ou seja, se submetendo à sorte. A nós só resta especular a respeito dos eventos em progresso, porém, a História é excelente como fonte de inspiração e pode nos abrir perspectivas que, por vezes, nos levam a seguir pistas que conduzem a uma melhor compreensão da realidade. Muito pouco, é verdade, mas não resta alternativa se quisermos estar um passo à frente. É isto que farei agora em relação a uma situação fundamental para o mundo de amanhã, o futuro de Taiwan (pessoalmente, prefiro chamar de Formosa).
Do que se escreve a respeito do passado, do presente e do futuro da China, pouca coisa vai além dos lugares-comuns. Quase tudo cai por terra quando estudamos a evolução deste colosso com a devida atenção. Conhecendo minimamente a história daquela civilização, e com alguma intuição da mentalidade da sua elite política, posso afirmar que o fumo da guerra levantado nas questões chinesas é ainda mais denso que o habitual. Estamos a lidar com uma maneira de abordar problemas diversa, dotada de uma história invulgar e, consequentemente, em posse de um acervo bastante peculiar de fontes para analogias históricas em relação aos problemas presentes e aos desafios futuros. E a elite política chinesa, ainda por cima, se esforçou ao máximo para nos compreender. De certa forma, nossas elites se tornaram previsíveis para os chineses, mas o contrário não é verdadeiro. Uns poucos, entre nós, se esforçaram por compreender os chineses. Entre eles, sem com isso fazer nenhum julgamento moral, cito Henry Kissinger.
Os chineses, já na era Han, formaram um grande império, ainda que não fossem tão sofisticados na engenharia como eram os romanos, desenvolvidos na ciência como os gregos e afluentes como os indianos. Foi nas eras Tang e Song que se transformaram na mais sofisticada e rica civilização do mundo (1), perdendo a posição para os europeus em tecnologia naval e bélica na viragem do século XV para o século XVI, em sofisticação material durante os séculos XVII-XVIII e, em riqueza bruta, em meados do século XIX. Relativamente isolados, desenvolveram uma experiência política bastante diversa da nossa, especialmente nas relações com outros estados. Os estados com os quais fazia fronteira, muito mais fracos, eram tributários num sistema relativamente “gentil”, ao menos na forma como era exercido. Porém, nada disso foi construído sem se recorrer ao uso da força ou da ameaça.
Em termos resumidos, passada a fase de unificação dos “reinos chineses” e das lutas pela sobrevivência contra os bárbaros do norte – que mais tarde apareceriam nas fronteiras de Roma (2) – por volta do princípio do século 1 a.C., começa uma primeira fase de expansionismo contra reinos vizinhos no território do atual Vietnã e da atual Coreia (3), além da tomada de Alexandria Escate, no Tajiquistão (4). Uma segunda fase de expansionismo é inaugurada na dinastia Tang, em guerras contra os Omíadas, os Abássidas, os “tibetanos”, os “coreanos” e “japoneses” além dos “vietnamitas”, sendo continuada nas duas dinastias seguintes. Sob a dinastia Yuan (mongóis), há um movimento expansionista direcionado para o Japão, para a Birmânia, para o Vietnã e até mesmo para Java. No período inicial da dinastia Ming, há expansão no Xinjiang e até mesmo uma intervenção militar no Ceilão (5), mas a partir do primeiro quartel do século XV a China entra numa fase de reclusão defensiva e até mesmo retração em algumas áreas, como no Vietnã.
A terceira e última fase de expansão começa após a consolidação da última dinastia, fundada pelos invasores manchus (6). Já no século XVIII, após derrotar os russos (7) e vencer as rebeliões internas, a China Qing lançou guerras vitoriosas e brutais contra o Canato de Zungária. A Mongólia Exterior, a totalidade do Xinjiang e o Tibete foram anexados nestas duras e prolongadas campanhas, que duraram cerca de seis décadas. Ainda houve tentativas malogradas de invasão, com intuito de se estabelecer estados tributários, na Birmânia e no Vietnã. Podemos dizer que o fim a era de expansionismo chinês coincide com o fim do século XVIII. A China então atingiu, às vésperas da Primeira Guerra do Ópio, episódio que inaugurou um século de incertezas que quase sepultou um esforço contínuo de ao menos quatro milênios, a sua maior extensão territorial. Nada, absolutamente nada, poderia ser mais surpreendente para a elite chinesa de então.
Referências:
(1) – Lembremos que a Índia, riquíssima, estava dividida, e mesmo os seus grandes impérios estiveram longe de dominar todo o subcontinente. Mesmo nos casos em que estiveram próximos de alcançar tal feito, como no caso dos Mauri, esta era muito descentralizada. No caso da Europa, especialmente na sua parte Ocidental, vivia-se na fase mais dura da transição do mundo clássico para o feudalismo.
(2) – É altamente provável que os Xiongnu dos chineses fossem os hunos dos romanos e persas.
(3) – Para facilitar a leitura, usarei os nomes dos estados contemporâneos existentes nos territórios assinalados.
(4) – Ponto fundamental da Rota da Seda, “inaugurada” pelas conquistas de Alexandre.
(5) – Zheng He.
(6) – Qing.
(7) – Tratado de Nerchinsk.